Juliana de Albuquerque

Escritora, doutora em filosofia e literatura alemã pela University College Cork e mestre em filosofia pela Universidade de Tel Aviv.

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Juliana de Albuquerque

Obstáculos no mercado de trabalho colocam maternidade em xeque

Desmonte de serviços de cuidado, como creches, transfere ônus dessas atividades para mulheres

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“No meio do caminho desta vida me vi perdido numa selva escura, solitário, sem sol e sem saída. Ah, como armar no ar uma figura dessa selva selvagem, dura, forte, que, só de eu a pensar, me desfigura?” 

É a partir desta vigorosa interjeição que o poeta italiano Dante Alighieri dá início a sua jornada espiritual em "A Divina Comédia". É também a partir dela que eu tomo a liberdade de descrever o meu estado de nervos diante da possibilidade de se planejar uma gravidez

Tenho idade suficiente para ser mãe de pelo menos um filho pré-adolescente e, caso o susto que tive durante o meu primeiro casamento houvesse se confirmado, esta talvez fosse a minha realidade: mãe divorciada, acadêmica e escritora lidando todos os dias com a precariedade característica de cada uma dessas funções.

Criança almoça na creche Pequeno Gênio na cidade de Serrinha (BA) - Raul Spinassé - 20.nov.2019/Folhapress

Teria me inserido, desde cedo, em um contexto marcado pela interferência alheia no meu ambiente doméstico, o que diminuiria minhas chances de romper com o ciclo de dependência financeira e emocional que tanto afetou a vida das minhas avós.

Há quem diga que o nascimento de uma criança seja a vitória da esperança ante a experiência, e talvez realmente o seja. Mas a esperança, diz-nos Nietzsche em "Humano, Demasiado Humano", é uma virtude que devemos evocar com prudência, sob o risco ainda maior de prolongar o nosso tormento.

Em reportagem de 2019 do site HuffPost Brasil, as jornalistas Andréa Martinelli e Marcella Fernandes elencaram alguns dos obstáculos que as mulheres enfrentam para manterem-se no mercado de trabalho ao tornarem-se mães. Destaca-se a tradicional desigualdade entre homens e mulheres na partilha dos afazeres domésticos e no cuidar de pessoas. 

Com base nos dados recolhidos em 2017 pela Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios), do IBGE, as autoras afirmam que as mulheres ainda dedicam quase o dobro do tempo gasto pelos homens no desempenho dessas funções. A média feminina é de 21,3 horas semanais, enquanto a masculina não ultrapassa 10,9 horas.

Tendo em vista esses números, Andréa e Marcela alertam que, na avaliação de especialistas como a pesquisadora Marilane Teixeira, do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho da Unicamp, e a historiadora Glaucia Fraccaro, da PUC-Campinas, tanto a redução quanto o desmonte dos serviços públicos ligados ao cuidado das pessoas —como creches— transferem o ônus dessas atividades para as mulheres, reforçando o preconceito que os homens estariam mais aptos que nós para participar da vida pública e lidar com as exigências do mercado de trabalho.

O drama das mães que lutam para retornar ao mercado após a chegada de um filho não é exclusivamente brasileiro. Se as nossas creches públicas não conseguem atender boa parte das crianças de até três anos de idade, na Europa —em países como a Irlanda, onde eu moro— o custo das creches é excessivamente alto. 

Segundo uma pesquisa realizada em 2015 pelo jornal Irish Independent, a média anual de gastos com creche de famílias com duas crianças de até três anos é de 19,6 mil euros (R$ 91 mil).

Do mesmo modo, dados apresentados pela OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) em 2016 revelam que famílias irlandesas com renda equivalente a 167% da remuneração média nacional gastam por mês cerca de 27% da sua renda líquida com creches. Famílias francesas, por sua vez, gastam apenas 9,7% de sua renda mensal no serviço, graças aos subsídios oferecidos pelo Estado. 

Não é por acaso que, muitas vezes, as mães irlandesas deixam de trabalhar para se dedicar exclusivamente ao cuidado das crianças. De acordo com o Escritório Central de Estatísticas do país, em 2017 existiam na Irlanda 417,3 mil mães donas de casa contra 10,4 mil homens exercendo a mesma função.

Diante de todas essas informações, sinto-me naturalmente desencorajada a ter filhos. Afinal, será justo cobrar de mim e de tantas outras mulheres que a maternidade se imponha como um empecilho para a realização das muitas atividades capazes de nos conferir autonomia e bem-estar? Ou será que, ao invés de simplesmente restringir os nossos passos, a maternidade também não deveria complementar um projeto de vida no qual a mulher não se veja obrigada a frustrar o próprio futuro?

Representantes da literatura feminista voltada para a discussão da maternidade alertam-nos para a necessidade de repensar a situação da mulher ao desempenhar a função de mãe. É nesse sentido que Andrea O'Reilly, professora da Universidade York, no Canadá, defende que as categorias mãe e mulher deveriam ser diferenciadas entre si, o que contribuiria para que pesquisadoras acadêmicas e a militância feminista percebam que as mulheres em situação de maternidade são duplamente atingidas por problemas de ordem política, econômica, social e psicológica —por serem mães e mulheres.

No artigo "Matricentric Feminism: A Feminism for Mothers" (feminismo matricêntrico: um feminismo para mães), O'Reilly deixa clara a necessidade de inserirmos a maternidade no debate feminista, sem que isso necessariamente signifique um retorno ao argumento essencialista e reacionário de que as mulheres nascem para desempenhar a maternidade. Assim, a pesquisadora defende que uma discussão feminista sobre a maternidade não seria incompatível com a ideia de gênero enquanto construção social.

A retomar a sugestão da escritora norte-americana Adrienne Rich de que existe uma diferença entre a maternidade enquanto experiência e enquanto instituição, O'Reilly combate posicionamentos tradicionalmente associados ao feminismo radical, como o protesto de Shulamith Firestone —autora de "The Dialectic of Sex" (a dialética do sexo, sem edição brasileira), publicado em 1970— para quem as mulheres só seriam capazes de suplantar o patriarcado a partir do momento em que se livrassem do jugo da reprodução natural. 

De minha parte, admito certo encantamento pelo radicalismo de Firestone. No entanto, ao amadurecer, tomo ciência que, para mim, de nada adiantou nutrir qualquer superioridade moral ante os riscos inerentes à realização dos meus desejos. 

Assim, comungo com O’Reilly da necessidade de compartilharmos experiências sobre a maternidade de modo a nos opormos à perpetuação de velhas injustiças de gênero, prevenindo que persistam sombras de ressentimento entre as mulheres.

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