Karla Monteiro

Jornalista e escritora, publicou os livros "Karmatopia: Uma Viagem à Índia", ​"Sob Pressão: A Rotina de Guerra de um Médico Brasileiro" (com Marcio Maranhão) e "Samuel Wainer: O Homem que Estava Lá​"

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Karla Monteiro
Descrição de chapéu Eleições 2022

Linchamento moral e espírito de fênix unem Lula e Getúlio

Mirando a ressurreição de Lula nas urnas, viajei às páginas da trilogia espetacular de Lira Neto sobre Vargas

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"Tentaram me enterrar vivo, e eu estou aqui": a frase de Lula, proferida durante o primeiro discurso como presidente eleito, arrancou palmas e gritos da robusta torcida. Como na hora do gol decisivo, quando a explosão vem sem ensaio, espontânea, exagerada. Desde as 17h, sofríamos juntos, concentrados na casa de uma amiga, no bairro do Santo Antônio, em Belo Horizonte.

"Chegamos ao final de uma das mais importantes eleições da nossa história. Uma eleição que colocou frente a frente dois projetos opostos de país", disse, iniciando a fala, que seguia traçando linhas: "O Brasil não pode mais conviver com esse imenso fosso sem fundo, esse muro de concreto e desigualdade que separa o Brasil em partes desiguais que não se reconhecem. Este país precisa se reconhecer. Precisa se reencontrar consigo mesmo".

O presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT) discursa, em São Paulo, após a vitória no segundo turno - Nelson Almeida - 30.out.22/AFP

No longínquo 7 de abril de 2018, data do enterro de Lula, eu assistira sozinha às tristes cenas ocorridas em São Bernardo do Campo, na sede do Sindicato dos Metalúrgicos. Chorei, vendo-o altivo sobre o palanque, após dois dias entrincheirado entre os seus, no mesmo sindicato onde havia iniciado a caminhada nos idos de 1979. Para mim, estava claro: a prisão de Lula iria aprofundar a balbúrdia institucional em que havíamos nos metido desde a farsa parlamentar que derrubara Dilma Rousseff.

O processo que o condenou trazia fraturas expostas, apontadas por diversos juristas. Favorito nas pesquisas, sobraria, então, a dúvida: a prisão era uma artimanha para tirá-lo da disputa eleitoral?

Se era culpado ou não, não se podia ter certeza, o que comprometia a legitimidade do pleito a seguir —e a própria noção de democracia. O descrédito na política, que vinha correndo a sociedade, atingiria o ápice e, como sempre acontece ao final dessas novelas, só poderia desaguar numa figura autoritária, um protofascista.

Chorei não só por Lula, o grande personagem da minha geração, mas por mim, pelo meu destino de sul-americana.

Cercado pela multidão que acorreu a São Bernardo, ele falara por mais de meia hora, esculpindo cada frase, destinando-as ao futuro, aos livros de história. "Eu não sou mais um ser humano. Eu sou uma ideia. Uma ideia misturada com a ideia de vocês", disse. "Não adianta tentar parar os meus sonhos porque, quando eu parar de sonhar, eu sonharei pela cabeça de vocês."

Antes de encerrar sua carta-testamento, deixara a sentença apoteótica: "Os poderosos podem matar uma, duas ou três rosas, mas jamais poderão deter a chegada da primavera".

"Saio da vida para entrar na história"

Comparar personagens históricos de origem e trajetórias tão distintas é um risco —e talvez uma grosseria que historiadores não cometeriam. Mirando essa inacreditável travessia de Lula, porém, viajo às páginas da espetacular trilogia "Getúlio", de Lira Neto, lançada pela Companhia das Letras. Certa feita, ouvi do próprio Lira a afirmação de que os dois presidentes, Lula e Vargas, têm em comum, além da profunda identificação popular, o linchamento moral. E, eu completaria, o espírito da fênix.

Após a deposição, em 1945, o ditador, que comandara o país por 15 anos, fora dado como morto. Cinco anos depois, protagonizaria um retorno triunfal. O pleito de 1950 transcorrera sangrento, com mortos e feridos. Disputando com o candidato da UDN, o brigadeiro Eduardo Gomes, Getúlio fizera a campanha mais espetacular que já se vira, correndo o Brasil de ponta a ponta.

"Já na capital do Amazonas pude pressentir que espécie de espetáculo me caberia testemunhar. No aeroporto, a polícia teve de dispersar o povo para permitir que o avião encontrasse espaço na pista de pouso", descreveria Samuel Wainer, o único jornalista a cobrir a campanha, ignorada pelos jornais, empenhados na eleição do brigadeiro.

"Depois, durante o comício, o palanque sacudia, abraçado pela multidão. Eram camponeses com pés de Portinari, brasileiros descalços, gente humilde, homens sem posses que vinham saudar o ‘pai dos pobres'"".

O mesmo Wainer, aliás, diria a Getúlio, logo depois de sua eleição: "A imprensa pode não ajudar a ganhar, mas certamente ajuda a perder". Os anos seguintes, conforme a minuciosa obra de Lira Neto, seriam, de fato, de linchamento moral, culminando com a "República do Galeão", o inquérito militar instaurado para apurar a participação do Catete no atentado contra Carlos Lacerda.

"O senhor Getúlio não deve ser candidato. Se for candidato, não deve ser eleito. Se for eleito, não deve tomar posse. Se tomar posse, não pode governar", pregava o líder udenista, dono do diário Tribuna da Imprensa.

Já li e reli incontáveis vezes o capítulo 18 do terceiro volume da trilogia. Eram 2h da manhã do dia 24 de agosto de 1954 quando Getúlio encerrara a última reunião ministerial. Nessa altura, já sabia que, dentro de algumas horas, estaria sendo tocado para o exílio em São Borja, despejado do Catete pelos assanhados generais. Às 8h30, ouviu-se o estampido que mudou a rota da história.

"É evidente que houve aquele momento de pena do homem, da tragédia humana, da tragédia pessoal, de imaginar a agonia em que um homem deve estar para chegar a dar um tiro no coração", rememoraria Lacerda, que, à hora do suicídio, comemorava a deposição do presidente na casa de José Nabuco, no bairro do Humaitá, no Rio de Janeiro: "Alguém, então, disse: ele puxou a toalha debaixo da nossa festa".

Se Lula ressuscitou nas urnas, Getúlio ressuscitou (de novo) matando-se. A notícia de sua morte levara milhares às ruas do país, provocando tamanha comoção popular que adiou o golpe militar por dez anos. Os generais de 1964 seriam os mesmos de 1954.

Nas eleições de 1955, Jango, seu herdeiro político, acabou eleito vice-presidente, arrebanhando mais votos do que o candidato a presidente, Juscelino Kubitschek. À época, votava-se em separado para presidente e vice-presidente.

Lida hoje, a carta-testamento de Vargas condensa pensamento muito semelhante ao discurso de Lula em São Bernardo do Campo. Sem entrar no mérito da pertinência ou não dos dois documentos históricos, ambos apontam na mesma direção: a velha luta de classes.

"Mais uma vez, as forças e os interesses contra o povo coordenaram-se e novamente se desencadeiam sobre mim. Não me acusam, me insultam, não me combatem, caluniam, e não me dão o direito de defesa. Precisam sufocar a minha voz."

Os dois últimos parágrafos deixam claro que Getúlio Vargas, assim como Lula em São Bernardo, apostou na ideia que acreditava representar.

"Meu sacrifício vos manterá unidos e meu nome será a vossa bandeira de luta. Cada gota de meu sangue será uma chama imortal na vossa consciência e manterá a vibração sagrada para a resistência. Ao ódio respondo com o perdão. E aos que pensam que me derrotaram respondo com a minha vitória."

"Lutei contra a espoliação do Brasil. Lutei contra a espoliação do povo. Tenho lutado de peito aberto. O ódio, as infâmias, a calúnia não abateram meu ânimo. Eu vos dei a minha vida. Agora vos ofereço a minha morte. Nada receio. Serenamente dou o primeiro passo no caminho da eternidade e saio da vida para entrar na história."

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