Karla Monteiro

Jornalista e escritora, publicou os livros "Karmatopia: Uma Viagem à Índia", ​"Sob Pressão: A Rotina de Guerra de um Médico Brasileiro" (com Marcio Maranhão) e "Samuel Wainer: O Homem que Estava Lá​"

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Descrição de chapéu Congresso Nacional

Filme mostra luta de mulheres para ter voz na Constituição de 88

Documentário 'Lobby do Batom' retrata aliança de mulheres espetaculares em busca de seus direitos

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Eu já tinha idade, ou quase, para saber das coisas, porém não acompanhei à época e nem nunca soube de nada disto. De férias, sem conseguir ler uma linha de livro para escrever esta coluna, fui capturada por um filme: "Lobby do Batom", de Gabriela Gastal, com roteiro de Christiana Albuquerque e produção de Renata Fraga.

Do tempo desta história tão bem contada, só me lembrava com nitidez das imagens do sóbrio doutor Ulysses —e do meu pai fazendo "shhh!" na hora em que ele aparecia no Jornal Nacional.

Mulheres de movimentos feministas posam para foto perto do Congresso, em Brasília - Arquivo Agencia Camara

"Lobby do Batom" é um documentário surpreendente, que nos leva de volta à esquina dos 80, entre 1986 e 1988, aquele hiato entre as trevas do regime militar e a promulgação de uma nova Constituição.

O ponto de vista é o de um grupo de mulheres espetaculares, que decidiram se intrujar num mundo de homens que se organizavam para compor o conjunto de leis regentes da recém-nascida democracia. Para se ter uma ideia do terreno em que elas pisavam, a Câmara dos Deputados não tinha banheiro de mulher.

Curioso ligar os pontos, reconectar-se com esta linhagem. "Lobby do Batom" tem exatamente este efeito: estabelece a conexão direta entre o "velho" e o "novo" feminismo, como se coubesse a cada geração por vir a missão de soprar o mesmo fogo.

Segundo a economista Hildete Pereira de Melo, uma das apaixonantes personagens do filme, o feminismo seria como "fogo de monturo", queimando por baixo, sem que se perceba. A depender do vento da hora, vira incêndio.

Se, em 1988, elas brigaram para incluir na Constituição direitos fundamentais das mulheres, hoje a batalha passa por preservá-los, diante da onda conservadora que, certamente, não se evaporará com a posse de Lula.

Um dos exemplos mais aberrantes é o Estatuto do Nascituro, projeto da bancada bolsonarista em tramitação no Congresso, propondo transformar em crime hediondo o aborto, inclusive nos casos de anencefalia, risco à vida da mãe e estupro. A disputa do aborto legal em casos extremos compusera, aliás, um capítulo a parte na guerra travada em "Lobby do Batom".

A história do nome

Na tela, vão surgindo rostos conhecidos e outros nem tanto, em imagens de arquivo e entrevistas com as que seguem na ativa: Benedita da Silva, Lélia Gonzales, Ruth Escobar, Marina Colasanti, Maria da Conceição Tavares, Tizuka Yamasaki, Ruth Cardoso, Tônia Carrero, Anna Maria Rattes, Comba Marques Porto, Jaqueline Pitanguy, Leila Linhares Bartest, Shuma Schumaher, entre outras tantas notáveis.

Em 1985, após intensa mobilização, elas conseguiram criar o Conselho Nacional dos Direitos das Mulheres (CNDM), estabelecendo a base oficial do movimento suprapartidário que mudaria para sempre a condição da mulher no Brasil. No ano seguinte, 1986, com a eleição dos deputados que comporiam a Assembleia Nacional Constituinte, intensificaram a mobilização, lançando 166 candidaturas e elegendo 26.

Quando, enfim, iniciaram-se os trabalhos na Câmara dos Deputados, em 1987, já se encontravam afiadas, batendo de gabinete em gabinete com uma obra em progresso: a "Carta das Mulheres Brasileiras aos Constituintes", elaborada conjuntamente com diversos movimentos sociais.

"Tenho a revolução dentro de mim", justificava Ruth Escobar, a primeira presidente do CNDM. A missão era "furar o bloqueio de um estado dominado por homens".

Então, vigorava ainda o artigo 233, do Código Civil de 1916, que conferia ao homem o papel de "chefe da sociedade conjugal". Pela lei vigente, a mulher não piscava sem a autorização do marido, exigida inclusive para o exercício de profissão. Obviamente a violência doméstica estava subtendida, fosse psicológica ou física.

Fora uma briga linda, capitaneada por mulheres inteligentes, conscientes, libertárias, fortes, que criaram uma onda avassaladora, envolvendo diversas realidades sociais na construção da "Carta das Mulheres Brasileiras aos Constituintes". Nada do que temos hoje em termos de direitos constitucionais saíra de graça. Conforme os depoimentos, mesmo os progressistas torciam o nariz, acusando-as de "dividir a luta de classes".

Certa feita uma delas ia se aproximando de um bolinho de deputados, quando ouviu a frase: "Lá vem o lobby do batom". A piada rendeu uma reunião da diretoria do CNDM. Em votação, decidiu-se, porém, comprar a piada. Em vez de uma moção de repúdio ao bullying, adotou-se o batom como símbolo. E, ao fim, o "lobby do batom" sairia cantando vitória, com 85% das reivindicações aprovadas.

"Aprendam que a política é boca no trombone. Aprendam!", concluiu Hildete Pereira de Melo

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