Luciano Magalhães Melo

Médico neurologista, escreve sobre o cérebro, seus comandos, seus dilemas e as doenças que o afetam.

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Luciano Magalhães Melo
Descrição de chapéu Mente

Cheiros: do nariz ao nosso cérebro e a nossa maravilhosa vulnerabilidade

Recordações trazidas pelo olfato causam emoções mais intensas do que lembranças desencadeadas por algo que se vê

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Eu estava em um plantão num pronto-socorro, há poucos dias da conclusão do curso de medicina, quando uma equipe de resgate externo entrou às pressas na sala de emergência a empurrar duas macas. Em cada maca, uma vítima do mesmo acidente, um atropelamento por caminhão. Nós, que atendíamos, seguimos protocolos ordenados e rapidamente expusemos as lesões às nossas vistas, cujos danos eram incompatíveis com sobrevida.

Sem opções terapêuticas, os esforços foram cessados, o cenário deixava claro a crueza do destino. Logo depois, a sala de emergência estava limpa e reabastecida com novos materiais, mais uma vez adequada a esperar a próxima emergência. Muitas horas depois, entrei naquela sala mais de uma vez. Nada do que se via sinalizava o atropelamento. Mas havia um cheiro de ferro, este metal é um importante componente do sangue e havia tatuado o ar.

Anos mais tarde eu visitava um museu em que havia um convite para tocar um meteorito exposto em destaque. Depois dessa experiência visual e tátil, cheirei minhas mãos. Do espaço, restava em minha pele o odor de ferro. Minhas memórias fizeram-me ter novamente com o tempo final da minha graduação. Eu sentia o efeito Proust, o resgate de memórias vivas a partir da ativação de um sentido.

Mulher se aproxima para sentir cheiro de flor, em jardim de Londres - Toby Melville/Reuters

Este fenômeno é nomeado em honra ao escritor francês Marcel Proust, que em uma passagem da obra "Em Busca do Tempo Perdido" transcreveu o deslumbre de reviver, repentina e poderosamente, a infância, como se tivesse sido transportado à época antiga. Tudo provocado pelo cheiro e gosto do bolo Madeleine mergulhado em chá. Disparidades à parte, o processo mental, que me fez recordar a faculdade, tecnicamente, foi o mesmo que fez o artista retomar a infância.

Existem evidências de que as recordações trazidas pelo olfato causam emoções mais intensas, lembranças mais nítidas e sensações de transporte ao passado mais fortes do que as lembranças desencadeadas por algo que se vê.

Mas a visão é poderosa, ela nos presenteia com cores, forma, textura, movimento, velocidade, direção, distância, localização, orientação e tamanho. Nós reconhecemos objetos e pessoas olhando, e não cheirando. Ao caminharmos, varremos o trajeto com o olhar, sem darmos atenção às informações captadas pelas narinas. Por isso frequentemente rotulamos o olfato como pouco relevante e o negligenciamos, a despeito das associações que comumente concede, como as que estão entre bolos e eventos da infância; e entre meteoros, ferro e sangue.

Injustiça. Nossa desatenção a este sentido nos faz desconsiderar que aproximadamente 80% a 90% do que é percebido como "gosto" é, na verdade, um cheiro. Certas moléculas, frutos dos alimentos, alcançam áreas olfativas por via retronasal, liberando sinais elétricos que chegarão em áreas cerebrais e, em conjunto com sensações gustativas, construirão a experiência do sabor.

Entretanto, o olfato —possivelmente, o primeiro sentido— não surgiu na natureza com o propósito de realçar o paladar. Provavelmente a função primária é a navegação, orientar o ser a se mover influenciado pela distribuição de odorantes no tempo e no espaço. Cheiros nos informam o passado, por isso sabemos que alguém há pouco saiu do elevador com uma pizza e que o cachorro há horas urinou no colchão atualmente seco. Cheirando também antecipamos o que encontraremos em lugares não alcançados pela visão. Nós podemos usar o nariz para encontrar o caminho.

Dos hominídeos ancestrais até o ser humano, o crânio aumentou de tamanho e volume. O embate contra a pressão do ambiente fez prevalecer encéfalos com numerosas áreas de integração olfativas. Graças a esta sofisticação um enólogo sem ser pressionado pode ceder ao desejo hedônico e analisar cheiros de vinho, inclusive retronasais, comparar as impressões obtidas com outras sensações, avaliar diversos constituintes olfativos e os nomear separadamente. Este processo cognitivo alia aromas, linguagem e memória e diversos sentidos.

Odores facilitam conexões entre pessoas, ou aversões. Uma coelha pode matar seus filhotes caso os descendentes estejam contaminados com o odor corporal de outra fêmea. Em humanos, os cheiros influenciam nossas interações sociais, por exemplo, nos afastamos de pessoas com mau hálito. Mas você que me lê deve querer exemplos menos óbvios. Para agradar a sua paciência serei mais técnico.

A molécula hexadecanal emitida em fezes, na pele e no ar da expiração humana aumenta a agressividade em mulheres e a reduz em homens. Cérebros masculinos têm atividades diferentes dos cérebros femininos em respostas aos cheiros de substâncias quimicamente semelhantes aos hormônios andrógenos.

Contudo, é difícil afirmar quais são as consequências comportamentais causadas por distúrbios do olfato, pois o cérebro humano utiliza contingências, como a compensação por outros sensos e conceitos estabelecidos. E, geralmente, eventos que lesam nossas capacidades de perceber cheiros provocam outras deficiências, logo não é simples dizer o significado isolado de uma falha.

Sabemos que certas moléstias percorrem as vias da olfação, do epitélio sensorial nasal até as áreas intracranianas ligadas ou influenciadas por odores. Os impactos negativos tardios causados pela infecção da Covid-19 na habilidade de decodificar aromas na atenção e na memória seguem este fluxo. Algo semelhante é provocado pela doença de Parkinson. Nosso cérebro abre muitos caminhos para o olfato.

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