Luís Francisco Carvalho Filho

Advogado criminal, é autor de "Newton" e "Nada mais foi dito nem perguntado"

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Luís Francisco Carvalho Filho
Descrição de chapéu Folhajus violência

Drummond, leiteiro, Natal

Bolsonaro celebra armas e mortes

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Saladino (não confundir com o sultão do Egito e da Síria, guerreiro muçulmano que, séculos atrás, enfrentou a cristandade e reconquistou Jerusalém) morre na tarde do último sábado, vítima de disparo de arma de fogo, depois de assassinar a tiros a policial Milene, que investigava assalto ocorrido dias antes em rica vizinhança de São Paulo.

Empresário do ramo de medicina e diagnóstico, Saladino era do bem, dizem familiares e amigos. Além de proprietário de promissora rede de laboratórios, era CAC: tinha autorização governamental para possuir arma de fogo como "colecionador", "atirador esportivo" ou "caçador", três atividades que, convenhamos, não precisariam mais existir.

Rifle com uma pintura do nome do ex-presidente Jair Bolsonaro em clube de tiro
Rifle com uma pintura do nome do ex-presidente Jair Bolsonaro em clube de tiro em São Paulo - Carla Carniel - 29.jul.22/Reuters

Graças ao governo facinoroso de Jair Bolsonaro, à inépcia e omissão do Exército brasileiro, responsável pela fiscalização, e à atuação infame da bancada da bala e da indústria de armamento, o Brasil tinha 783,4 mil CACs em dezembro de 2022, muitos de perfil violento.

Em vez de colecionar livros ou lápis, colecionam pistolas, fuzis, fabricados para matar.

Parte desse armamento legal se transfere para milicianos e agentes do crime organizado. Além das mortes por imperícia ou engano, como a da policial Milene, levantamento do Instituto Sou da Paz detecta também o crescimento de casos de violência contra a mulher cometidos por colecionadores de armas.

O roteiro está pronto. Saladino oferece festa em sua mansão, imagina-se vítima de assalto inexistente e sai atirando. Replica, diante de câmeras de segurança, filmes de faroeste ou o modelo de extermínio desenvolvido pela polícia brasileira para matar, por matar, suspeito que, de fato, não é suspeito de nada, é apenas preto e pobre.

É o que os juristas chamam de legítima defesa putativa. Putativo é o que se supõe ser o que não é. Saladino se defende de agressão inexistente. Mata e morre por nada.

Não é a primeira vez, não será a última. Tem o menino alvejado porque pega jabuticaba em propriedade alheia. Tem o pai que mata filho por engano pensando que é ladrão. Tem o dono do bar que mata amigo por confundi-lo com bandido.

"Há no país uma legenda, que ladrão se mata com tiro", narra Carlos Drummond de Andrade no visionário poema "Morte do leiteiro", publicado em 1945, poema que o dramaturgo Mauricio Paroni de Castro me apresentou.

O poeta mineiro fala do "Meu leiteiro tão sutil / de passo maneiro e leve, / antes desliza que marcha. / É certo que algum rumor / sempre se faz: passo errado / vaso de flor no caminho, / cão latindo por princípio, / ou um gato quizilento. / E há sempre um senhor que acorda, / resmunga e torna a dormir. / Mas este acordou em pânico / (ladrões infestam o bairro), / não quis saber de mais nada. / O revólver da gaveta / saltou para sua mão. / Ladrão? Se pega com tiro. / Os tiros da madrugada / liquidaram meu leiteiro".

Perde a pressa: "Da garrafa estilhaçada, / no ladrilho já sereno / escorre uma coisa espessa / que é leite, sangue... não sei".

Drummond lamenta a morte do inocente leiteiro de apenas 21 anos, "Se era noivo, se era virgem, / se era alegre, se era bom, / não sei, / é tarde para saber", mas tem a ressalva: "está salva a propriedade".

Nem Milene nem Saladino celebrarão as festas de fim de ano. Assim como vítimas de bala perdida e tantos mortos por engano ou abuso de poder.

Drummond sentencia, "Bala que mata gatuno / também serve para furtar / a vida de nosso irmão".

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