Dois desdobramentos interessantes estão prestes a deixar a Copa do Qatar num lugar especial da história do futebol.
O primeiro é que a organização mais elitista e ascética da história dos Mundiais não impediu que uma pluralidade de expressões políticas invadisse o emirado. Os protestos contra a repressão aos movimentos LGBTQIA+, a polêmica sobre a proibição de bebidas alcoólicas e as manifestações pró-Palestina mostram que a inserção internacional controlada que almejam Qatar e outras petromonarquias não passa de ilusão.
O outro desdobramento é que a Copa do Qatar também está marcando a emergência de um futebol muito mais globalizado. Tudo indica que, a partir das quartas de final, a competição voltará a ser uma disputa entre Europa e América Latina. Mas as seleções africanas e asiáticas tiveram bom desempenho na primeira fase, e todos os continentes serão representados nas oitavas de final.
Uma história construída de conexões entres seleções emergentes e de transformações do futebol europeu. Tome-se a "Primavera Árabe", ou a classificação de Marrocos, a performance da Tunísia —e até a da Arábia Saudita contra a Argentina. Juntas, elas fazem parte de um "arco do futebol" que começa na África Ocidental, com Senegal, Camarões e Gana, passa pela África do Norte e segue até o Irã.
Existem fios condutores entre essas diferentes seleções, como os técnicos que ajudaram a profissionalizar o futebol das ex-colônias francesas. Com seu jeito de cantor de cruzeiro turístico, Hervé Renard é um discípulo de Bruno Metsu, conhecido pelos senegaleses como "Leão Branco", e de Claude Le Roy, outra figura lendária que treinou sete seleções africanas.
Uma referência mais próxima dos brasileiros é a geração de ouro de técnicos portugueses que ganhou proeminência com José Mourinho e foi seguida por tantos outros. Paulo Bento, idolatrado pelos sul-coreanos, foi criado nos campos do Sporting, onde treinou Abel Ferreira.
Outro fio condutor é a internacionalização do futebol europeu. O número de jogadores africanos nos principais campeonatos ultrapassou pela primeira vez a cifra de 500 com Senegal e Marrocos com mais de 50 cada um. A abertura comercial dos clubes controlados por investidores globais e a importância crescente dos direitos internacionais de transmissão também têm estimulado a chegada de jogadores da Ásia. Em 2022, a estrela sul-coreana Son Heung-min se sagrou artilheiro do campeonato inglês.
Desde o triunfo da Alemanha em 2014 predominava a ideia de que o futebol passava por uma revolução industrial. Grandes seleções seriam criadas de programas laboratoriais e sistemáticos que dominariam o futebol por gerações. Mas o futebol é o esporte rebelde por excelência, e o que vemos é a emergência de times que são o resultado da produção de talentos das interações transnacionais do futebol moderno.
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