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Descrição de chapéu universidade

Nossos talentos da USP estão indo para a medicina privada, diz Eloisa Bonfá

Ela é a primeira mulher a comandar a Faculdade de Medicina da USP

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A reumatologisa Eloisa Bonfá, primeira mulher a comendar a Faculdade de Medicina da USP

A reumatologisa Eloisa Bonfá, primeira mulher a comendar a Faculdade de Medicina da USP Zanone Fraissat/Folhapress

Pela primeira vez em 110 anos de existência, a Faculdade de Medicina da USP será comandada por uma mulher: a reumatologista Eloisa Bonfá, 64, tomou posse na quinta (10), para um mandato de quatro anos.

Não é a primeira vez que ela quebra paradigmas na instituição à que dedicou toda a sua vida profissional: aos 40 anos, a médica foi a primeira professora titular do Departamento de Clínica Médica da USP. Em 2011, foi a primeira mulher à frente da diretoria clínica do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP, o HC.

A reumatologista Eloisa Bonfá na Faculdade de Medicina da USP, em São Paulo 
A reumatologista Eloisa Bonfá na Faculdade de Medicina da USP, em São Paulo  - Zanone Fraissat/Folhapress

No cargo, enfrentou a Covid-19, e atendeu mais de 12 mil pacientes vítimas da maior pandemia da história recente.

Nesta conversa com a coluna, ela revela o temor de que aconteça, com as universidades públicas brasileiras, o mesmo que ocorreu com o restante do ensino, que, sem investimentos, foi esvaziado em prol de instituições privadas.

Ela fala também do machismo que está "nas paredes" da instituição, da elitização do ensino de medicina e da necessidade de a faculdade ser "um lugar de transformação":

A PIONEIRA

A medicina no Brasil começou mais como uma profissão de homem mesmo. Mas há muito tempo há um equilíbrio, se é que hoje não tem até mais mulheres [trabalhando na área]. Na academia, isso demorou mais tempo para acontecer. Eu fui a terceira mulher professora titular da instituição. E isso ocorreu apenas em 1998. Fui também a primeira mulher a ser chefe de departamento, a primeira a ser diretora clínica, com 70 anos. É uma instituição que demorou muito para fazer essa abertura. E, sendo assim, mais se demorou para que chegássemos [a posições de comando].

Ao mesmo tempo, é uma instituição que valoriza muito o mérito. Então a questão de haver barreiras [para mulheres] não é muito clara. Você não percebe. Ela fica escondida de alguma forma. Mas que a barreira existe, ela existe. Porque não faz sentido demorar tanto tempo assim para acontecer [de uma mulher virar diretora da faculdade]. O importante é que aconteceu. É uma honra estar aqui nesse momento. E a gente espera que seja uma abertura para que isso aconteça outras vezes.

O MACHISMO

Não houve nunca um momento em que as pessoas [na faculdade] falassem "você não pode porque é mulher". Nunca foi explícito. Não dá para identificar [fatos em que foi vítima de machismo]. Mas está nas instituições, nas paredes, na forma de fazer. Existe. Você sente no ar. "Eu não vou contar essa piada porque a Eloisa está aqui", ou "ah, depois eu te falo".

É algo muito diluído, porque aqui [na Faculdade de Medicina], como eu disse, tem que valer o mérito. Mas [o machismo] existiu. Estou muito feliz [de ser eleita diretora], mas fico até triste porque nós "perdemos" da Poli [Escola Politécnica da Universidade de São Paulo], que ensina uma profissão altamente masculina [engenharia]. E eles tiveram uma diretora mulher antes de nós [Liedi Bernucci, que foi eleita diretora da Poli em 2018]. Mas estamos chegando lá.

FACULDADE PAGA

A Faculdade de Medicina já tem 50% de [estudantes que ingressam nela pelas] cotas. Então essa questão de que é uma faculdade só de ricos está sendo corrigida. É importante ter essa inclusão e manter essa diversidade porque você atrai talentos em busca de um nível mais alto de competência.

Eu sou contra cobrar mensalidades dos alunos, porque isso não é uma solução. A solução é a gente tentar mudar um conceito de que não é de graça essa faculdade. Ela é bem paga, e ela é cara. E nós temos que inserir isso na cabeça das pessoas que estão aqui, de que é um investimento que está sendo feito nelas, na família delas.

E que eles estão sendo privilegiados e, portanto, deveriam fazer como no exterior: você paga, no sentido de doação. Você participa do processo.

Vamos deixar claro aos nossos alunos, de cotas ou não cotas, que isso aqui é um investimento extremamente caro que a sociedade faz neles. E que nós temos que prestar contas.

Nós vimos na pandemia que, quando isso acontece, a sociedade percebe para onde está indo o investimento e contribui, apoia. Nós só conseguimos fazer o que fizemos na Covid-19 porque a sociedade estava junto conosco. O que estamos fazendo que faz diferença para a sociedade? Temos que mostrar. Mas nós só falamos em revistas científicas.

MÉDICO DE ELITE

Eu quero colocar para os alunos qual é o custo de um curso de medicina, para que eles saibam que não estudaram de graça. Alguém pagou por isso. A cada ano entram 180 alunos no vestibular, e no total nós temos hoje cerca de 1.300 alunos. Aumentar vagas é difícil, porque requer mais recursos.

Eu até vou pedir para levantar esses dados porque eu quero saber quanto custa um aluno de medicina. Nós vamos cair de costas quando soubermos, porque é muito caro. Vamos trabalhar na mudança cultural. Nós fizemos uma gerência de humanização no Hospital das Clínicas [da Faculdade de Medicina da USP, o HC].

É um esforço para que as pessoas aprendam a ter outro olhar que não apenas o do sucesso na profissão. O olhar do por que ser médico, do que é preciso valorizar, da forma como você se relaciona. Vamos trazer esse centro para a faculdade. Vai ter uma disciplina específica para isso.

Como eu disse, 50% dos nossos alunos entraram por cotas, e muitas vezes eles vêm de fora e chegam numa cidade como São Paulo e não temos nenhuma recepção para eles.

Queremos montar um site e mobilizar alunos que seriam tutores voluntários para recebê-los. Então o que nós estamos buscando é que os estudantes de medicina não fiquem focados apenas no aprendizado e no que eles vão ganhar no futuro. Queremos que eles tenham um olhar mais amplo, e que a faculdade seja um lugar de transformação.

SUCATEAMENTO

Todos nós temos que pensar se já não está acontecendo com as universidades públicas muito boas o que aconteceu com o ensino fundamental no Brasil. Um ensino que era público e de excelência, no qual o investimento foi caindo e pessoas foram se retirando de escolas públicas e foram buscando as escolas privadas. Nós já estamos vendo isso na Medicina.

Por exemplo, os nossos talentos estão indo para o [Hospital Israelita] Albert Einstein, os professores [que vão dar aulas na faculdade do hospital], são muito mais bem pagos lá. É uma realidade. Você não pode impedir. É o mercado. Nós não podemos, portanto, depender mais exclusivamente dos recursos e do investimento público. O mundo ideal não existe.

Temos que buscar outras fontes [de financiamento].Os equipamentos que usamos são dolarizados, os remédios e a manutenção também, cobram um absurdo só para chegarem aqui. Com todas as travas que existem no serviço público, como isso pode funcionar? Então você não pode abrir mão do recurso público, mas não pode deixar de pensar em alternativas para poder se sustentar.

Hoje, com 5% do que arrecadamos de recursos de pacientes privados [no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP], nós conseguimos 40% do que precisamos para rodar o hospital. É dinheiro que serve para consertar a ressonância, para comprar medicamentos. Nós só fazemos [atendimentos privados] para manter o SUS.

O DINHEIRO

Nós temos uma escola de educação permanente aqui dentro que é credenciada pelo MEC. É de formação e capacitação em todas as áreas de saúde. Podemos pegar nossos colaboradores para dar cursos de interesse de toda a sociedade. Eles podem ganhar um pouco mais e ficar aqui. Já podemos fazer isso, mas não estávamos investindo. O nosso foco era sempre em recursos públicos.

Os principais faturamentos do Einstein hoje são em educação e pesquisa clínica, você sabia? Em terceiro lugar vem a assistência. Há um investimento muito grande em pesquisa. E o que acontece hoje é que os meus assistentes [da USP] fazem pesquisas no [hospital] Oswaldo Cruz, no Einstein, no [hospital] Sírio-Libanês.

A indústria paga muito bem. Ele [médico] recebe razoavelmente bem [nos outros hospitais], para ele. Se fixa lá. E vem aqui [no HC da USP] bater ponto e fazer muito menos do que ele faz lá [nos outros hospitais]. Queremos que eles fiquem aqui.

Por isso eu quero fazer um Instituto de Pesquisa Clínica na faculdade. Nós já ganhamos um prédio do governo e da reitoria da USP para isso.

Ele vai começar a funcionar no primeiro semestre do ano que vem, e será uma fonte de recursos para a instituição. A indústria financia as pesquisas. Os professores que participam delas recebem, ficam aqui, ensinam os nossos alunos —e geram recurso adicional para a instituição.

A pesquisa clínica é hoje em várias universidades do mundo a principal fonte de faturamento, porque o investimento é muito grande. Nos EUA, as universidades têm um fundo para a melhoria da infraestrutura e dos salários e para a contratação de pessoas.

Há muitos anos o dinheiro [da faculdade] vem do governo, e isso nos ajuda muito. Mas queremos também ser proativos tanto para obtermos recursos de emendas [parlamentares] como de doações privadas.

VIVA O SUS

A primeira coisa que eu queria falar é que o SUS foi fantástico na pandemia. Se havia alguma dúvida se o SUS vale a pena, [a pandemia] afastou totalmente essa dúvida.

A hierarquização do SUS, com atendimento primário, secundário, terciário, funcionou que foi uma beleza. Sem isso, nós não teríamos conseguido atender mais de 10 mil pacientes como nós atendemos. Porque se todo mundo com gripe viesse para nossa porta [do Hospital das Clínicas de São Paulo], nós não conseguiríamos atender o doente mais grave. O paciente certo na porta certa é o que torna a saúde pública mais barata, porque você não ocupa um lugar tão caro [como o HC] para tratar de uma coisa menos complexa. E ele [o SUS] realmente dá acesso.

Um ex-aluno nosso que coordenou o atendimento da Covid no Bronx, nos EUA, nos visitou e ficou impressionado com o Brasil. Porque lá, sim, morreu um monte de gente. As pessoas eram colocadas no chão do estacionamento e eles escolhiam para tratar aquele que tinha mais chance de sobreviver. Então, exceto em Manaus, em que tivemos falhas terríveis, nós não tivemos mortes nas ruas como ocorreu em Nova York. O SUS funcionou, sim. E nós temos que ter orgulho.

Por outro lado, o SUS é subfaturado. Ele paga menos por uma cirurgia do que eu gasto naquela cirurgia. Nenhuma engrenagem funciona assim. Depois da pandemia, temos que resgatar e corrigir os rumos.

Vamos pensar na vacina. Nosso sistema é um exemplo para o mundo. Mas nos últimos anos os índices de imunização vêm diminuindo. Imagine, ter poliomielite de novo? Isso é inadmissível. Então, em deferência ao que o SUS fez na pandemia, nós temos que investir nele e corrigir as disparidades.

A gestão também é uma questão. Ela faz toda a diferença. A pessoa que entra aqui [no Hospital das Clínicas], que é SUS, e na maioria das vezes ela fica encantada com o atendimento. Então não importa se a estrutura é a melhor ou não. Se aqui funciona, tem que funcionar em outros lugares.

Mas existe, sim, uma disparidade, em termos de gestão, de fluxo de dinheiro e de prioridades. Você tem que ter [atendimento de] alta complexidade. Mas precisa investir na base. E com isso evita que as pessoas passem para essa outra parte da cadeia. Com prevenção, com vacina.

Não dá para admitir que a vacinação esteja caindo. Isso é gestão. É propaganda, é forma de abordar. É distribuição. Então o SUS está precisando de um novo impulso, de um novo olhar para ele.

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