Mônica Bergamo

Mônica Bergamo é jornalista e colunista.

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Chico Buarque tem intuição rara e anda mais solto, dizem músicos de sua banda

Integrantes e 'membros honorários' do grupo que acompanha o cantor há décadas falam sobre turnê atual, relatam temores vividos nas eleições e exaltam Mônica Salmaso

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Da esquerda para a direita, o baixista Jorge Helder, a cantora Mônica Salmaso, o produtor-executivo Ricardo “Tenente” e o cantor Chico Buarque, no Tokio Marine Hall, em São Paulo Karime Xavier/Folhapress

Na escuridão que paira sobre os equipamentos e a fiação emaranhada dos bastidores do palco do Tokio Marine Hall, na capital paulista, uma fresta de luz atravessa as cortinas e ilumina metade do rosto de Chico Buarque, 78. Com os cabelos úmidos e penteados para trás, vestindo camisa social azul-marinho, calça jeans e sapatênis, ele recebe uma massagem que começa em seus ombros e percorre toda a extensão da coluna. "Isso aí é pra dar sono?", pergunta o cantor, em tom de brincadeira. "É pra dar uma energizada", responde Ricardo Clementino, o Tenente, seu produtor-executivo.

A poucos metros dali, enquanto a plateia ruidosa aguarda o início do show, toda a sua banda já está posicionada sobre o palco. O maestro Luiz Claudio Ramos ajeita o violão sobre o colo, Jurim Moreira empunha as baquetas, Marcelo Bernardes carrega um saxofone e Chico Batera inspeciona, em silêncio, toda a parafernália que compõe a percussão. João Rebouças está ensimesmado diante do piano de cauda, assim como Bia Paes Leme, em frente ao teclado. Os únicos que não parecem fisgados pela atmosfera quase meditativa são a cantora Mônica Salmaso e o baixista Jorge Helder, que fingem encestar uma bola de basquete imaginária minutos antes de as cortinas serem abertas.

Convidada de Chico, Mônica inicia o show dedilhando uma kalimba e revisitando os versos de "Todos Juntos", do clássico infantil "Os Saltimbancos" (1977). Chico se acomoda na coxia, em uma cadeira posicionada à esquerda do palco, e acompanha o início do show. As cerca de 2.200 pessoas que o aguardam nem sequer suspeitam que ele esteja ali, assistindo ao mesmo espetáculo que elas.

No meio da canção "Bom Tempo", também interpretada por Mônica, Chico se levanta e procura pelo banheiro, localizado atrás do palco. O Tenente que ofereceu a massagem é o mesmo que, com sua lanterna, ilumina Chico para que ele afivele novamente o seu cinto. O cantor, então, passa a perambular pelo espaço. É a vez de "Beatriz" ser cantada por Mônica. Chico tosse alto e retorna ao banheiro para limpar a garganta. Ao fundo, os acordes de "Paratodos" podem ser ouvidos. Chico volta dançando, seguindo um caminho aberto na escuridão pela lanterna do Tenente, enquanto sacoleja os ombros e bate palmas. É chegada a hora. Chico dá as caras, e a plateia vai ao delírio.

Chico Buarque conversa com o baixista Jorge Helder e com o produtor-executivo Ricardo "Tenente" Clementino durante passagem de som no Tokio Marine Hall, em São Paulo - Karime Xavier/Folhapress

Em excursão pelo país com a turnê "Que Tal Um Samba?" desde setembro de 2022, o artista ainda tem, nas próximas semanas, paradas previstas em Salvador e nas cidades de Lisboa e Porto, em Portugal, onde receberá o Prêmio Camões.

A primeira turnê de sua carreira, "Francisco", data de 1988. Até então, seus shows estreavam no extinto Canecão, no Rio de Janeiro, e eram levados a outras cidades do país e do exterior de forma mais pontual. "Não tinha essa produção toda de chegar aqui, passar o som e vestir o figurino. Não tinha nada disso", relembra o percussionista Chico Batera, 79, que acompanha Chico desde 1974. "Várias vezes a gente vinha do futebol, com a roupa do jogo mesmo, tirava a chuteira, botava uma bermuda e ia para o palco."

"Era outro Brasil", emenda ele, que viveu os primeiros anos de carreira sob a repressão da ditadura militar (1964-1985). "A polícia repressora tinha cadeira cativa. As três primeiras filas do teatro eram [ocupadas por] aquele pessoal de terno preto e óculos escuros. A garotada do teatro toda de túnica, tudo cabeludo, as meninas de saião, com a barriga de fora, e aqueles caras duros, achando que estavam disfarçados. Não tinha dia calmo. Havia sempre uma ameaça de aquele show ser o último."

O Chico gosta mais da solidão da criação do que da exposição do sucesso

Ricardo “Tenente”

produtor-executivo

De "Francisco" para cá, houve ainda as turnês "Paratodos" (1994), "As Cidades" (1999 a 2000), "Carioca" (2006 a 2007), "Chico: Na Carreira" (2011 a 2012) e "Caravanas" (2017 a 2018) —o que pode parecer pouco, se considerados os quase 60 anos de carreira de Chico. "Até 1994, a gente ia para França, Alemanha, Itália... Depois ele não quis mais fazer turnês grandes assim", conta Tenente, que está com o cantor desde 1987 e não revela a sua idade.

O apelido militar, a propósito, foi Chico quem sacramentou. "Não tem nada a ver comigo. Eu sou um cara de bom senso", se apressa em explicar. Ricardo virou Tenente depois que introduziu às turnês um cronograma com datas e horários que deveriam ser cumpridos por cada um durante as viagens, a fim de evitar desencontros em tempos sem internet ou telefonia móvel. "O Chico mandou essa de ‘parece um quartel’ e virou Tenente mesmo."

Foi ele, aliás, quem conteve uma maratonista que invadiu o palco e correu para lascar um beijo na bochecha de Chico durante a sua passagem por João Pessoa, em setembro passado. Ainda que a façanha da atleta não se compare a quando, em 2012, duas dezenas de mulheres extrapolaram o limite da plateia em busca do ídolo, a tentativa causa preocupação: o cantor passou por uma cirurgia na região da coluna há pouco mais de um ano, e qualquer tentativa de aproximação atrapalhada pode vir a prejudicá-lo. Todas as noites, para evitar novos beijos e abraços apressados, Tenente troca os bastidores pelo palco na hora do bis.

A barreira contra fãs, no entanto, não foi a maior precaução tomada nesta turnê. Dada a temperatura política que marcou o processo eleitoral ao longo do ano passado, a produção optou por usar um carro blindado para transportar o cantor entre os shows. "O Chico não é um cara que anda com segurança, não tem dessas coisas. Se botar um segurança atrás, ele abomina, acha desnecessário, uma bobagem. Mas a gente pediu um carro blindado, coisa que ele não pede também", conta Tenente.

O temor tinha a sua razão de ser. Mesmo fora do show business, Chico vinha sendo alvo de manifestações de ódio nos últimos anos. "Agora melhorou um pouco, né? Na época do [ex-presidente Jair] Bolsonaro estava pior. Ele quase não podia sair na rua que era ofendido", afirma o advogado Ricardo Cerqueira, que representa Chico há anos. O defensor era um dos presentes nos bastidores do palco do show a que a coluna assistiu.

Estou há 48 anos aqui e nunca vi o Chico dançar no palco. É a primeira vez

Chico Batera

percussionista

"Que Tal Um Samba?" chega neste domingo (2) ao seu 54º show. A esse número, somam-se mais seis semanas de ensaio, iniciadas em 18 de julho passado, em um estúdio no bairro carioca do Humaitá. "Já tocamos quase cem vezes esse show. Não tem nenhum garoto aqui. E todo mundo ainda quer tocar as músicas, seja no ensaio, na passagem de som, o que for", diz Chico Batera. "Se fosse uma coisa banal, se não fosse um raro acontecimento, a gente não ficaria tão emocionado."

A única queixa do percussionista se refere às escadas que conectam o palco ao camarim. "Se eu tenho que subir essa escada e descer [mais de uma vez], eu falo: ‘Posso subir e descer, mas não vou tocar no show’", diz, gargalhando. "‘Essa turnê com esse monte de velho de 70, 80 anos… Daqui a cinco anos, vai ter que ter uma equipe de cuidadoras", emenda, ainda rindo.

Apesar das queixas de Batera, a grande novidade trazida por "Que Tal Um Samba?", de acordo com todos os músicos, é a presença de Mônica Salmaso e seus efeitos sobre Chico. "Você vê que ele está todo descontraído no palco. Ele sente uma segurança com ela ali, sabe? Está sendo muito boa a participação dela, ele brinca mais", afirma o baterista Jurim Moreira, 66.

"Acho que ela trouxe um frescor e um vigor também. Ela é intensa como pessoa e como intérprete. Isso trouxe muita energia para o show", afirma a tecladista e arranjadora Bia Paes Leme, 64, em turnê com o carioca desde 1998. "O Chico é menos inibido do que dizem. ‘Ah, ele é tímido'. Nada, o Chico é totalmente ‘relax’. Mas quando você tem uma pessoa ao seu lado, dividindo de igual para igual as coisas, errar, por exemplo, fica mais leve. Você erra e morre de rir."

Chico, de fato, parece mais soltinho, dizem seus parceiros de décadas. "Estou te falando: estou há 48 anos aqui e nunca vi o Chico dançar no palco. É a primeira vez. Você já tinha visto, [Mario] Canivello?", pergunta Batera ao assessor de imprensa do cantor. "A gente viu com o Mestre Marçal", responde Mario. "Ah, sim. Mas era meio forçado, ele ficava muito duro", diz, rindo outra vez. Batera, que já tocou com nomes como Elis Regina e Ella Fitzgerald, não poupa elogios a Mônica. "O interesse dela pelos músicos é outra coisa rara. Toquei com todas as cantoras. A Elis interagia musicalmente, mas não demonstrava isso para o público como a Mônica faz."

Se a participação de Mônica lembra a parceria entre Chico e Maria Bethânia? Batera responde: "A imagem que eu tenho, inclusive reforçada pelo Chico, contando dessa época da Bethânia, era que antes do show eles estavam conversando e tal. Aí, de repente, a Bethânia entrava no camarim, mudava a roupa, passava por ele e já era outra pessoa. Já passava junto com o santo. Imagino que um cara como o Chico devia ficar meio sem saber o que fazer", afirma, rindo.

Com exceção de Jurim, que substituiu o baterista Wilson das Neves após a sua morte, ocorrida em 2017, todos os músicos estão em turnê com Chico Buarque ao menos desde a década de 1990. É, pau a pau com Roberto Carlos, uma das formações que há mais tempo acompanha um artista solo no Brasil, como afirma Luiz Claudio Ramos, 73. Ele grava com Chico desde 1972 e faz as vezes de maestro do grupo.

Ramos, aliás, é a primeira pessoa da banda com quem Chico tem contato quando decide sair em turnê pelo país e conclama o "tocar-reunir". A nomenclatura, de referência militar, é usada pela banda para se referir ao momento em que é dada a largada para os preparativos de uma turnê. O maestro faz todos os arranjos musicais e escreve todas as partituras usadas pelos demais integrantes. "Antes ele mandava fita cassete. Agora, ele grava no computador ou no WhatsApp mesmo e manda [a música], e a gente começa a trocar figurinhas", conta, sobre o início do processo.

Como o maestro avalia a aptidão de Chico para compor músicas? "A teoria musical ele não conhece, mas tem uma intuição rara. E sempre teve uma formação musical muito rica, sempre gostou de não fazer o óbvio e procurar saídas originais. Acho que isso é marcante na obra do Chico", afirma.

Chico Buarque durante passagem de som no palco do Tokio Marine Hall, em São Paulo - Karime Xavier/Folhapress

A dedicação e a meticulosidade do artista, que é chamado de "CDF" por parte de seus músicos, pôde ser vista pelo público com a mudança feita por ele em um verso da música "Beatriz". Depois de cerca de 40 anos, ele anunciou, durante um ensaio, que finalmente encontrou a palavra certa para um dos versos: em vez de "será que é divina / a vida da atriz", ele passou a cantar "será que é divina / a sina da atriz".

A convivência de longa data trouxe ao grupo uma dinâmica quase familiar: tanto o maestro quanto Wilson das Neves apadrinham filhos do baixista Jorge Helder, 60, na banda desde 1993. "Quando eu fui batizar a minha filha mais velha, a Maria Carolina, ele [Das Neves] segurou ela. Só que o padre, ao invés de molhar a cabeça, sem querer deu um banho na Maria. O Wilson das Neves recolheu a minha filha, olhou para o padre e falou assim: ‘Ô, rapaz, tu não é profissional, não? Deu um banho na menina", relembra Jorge, imitando a voz do baterista e caindo na risada.

"O Luiz Claudio é padrinho do meu filho mais novo, e meu irmão é padrinho do filho do meio. Mas o Das Neves falava assim: ‘Se esse baixinho tiver mais um, ele vai chamar o Chico Buarque. A intenção dele é chegar no Chico’", conta.

A gente sempre está estimulando o Chico a esticar [a turnê], a fazer mais shows. Coitado, ele está sempre em minoria

João Rebouças

pianista

O grupo que acompanha Chico se dá bem dentro e fora dos palcos. Até mesmo a preferência política dos músicos é alinhada. Ainda que uns sejam mais discretos que outros, o voto em Luiz Inácio Lula da Silva (PT) preponderou no pleito de 2022. "Estava todo mundo com o coração na mão. Entre o primeiro e o segundo turno, foi aquela tensão absurda", lembra Bia Paes Leme.

A angústia era tamanha que, entre todos, pairava o sentimento de que a turnê deveria ser cancelada caso o petista não saísse vitorioso, segundo relatam. "Muito provavelmente, se fosse outro o resultado, a turnê ia parar", disse Mônica Salmaso, em entrevista à coluna em fevereiro deste ano.

Se Jair Bolsonaro (PL) não foi motivo para o cancelamento, seus apoiadores, no mínimo, deram trabalho. O primeiro show após o pleito, em Porto Alegre, quase não foi realizado por causa dos bloqueios em rodovias promovidos por aqueles que não reconheciam o resultado das urnas. "Foi um sufoco danado, o equipamento não chegava", relembra Tenente. Depois de ficar bloqueado em São Paulo e em Curitiba, o caminhão chegou à capital gaúcha no dia do show, em cima do laço.

Quais impressões os músicos guardam do chefe? "O Chico é a mesma pessoa todos os dias, é impressionante. Eu nunca vi o Chico destratar ninguém, nunca vi o Chico ficar de cara amarrada. Ele é uma pessoa muito simples", afirma Jurim. "Quando ele ri, o olho dele enche de água. Antes de contar, ele está se divertindo porque já está contando a história para ele mesmo", diz Bia.

Da esquerda para a direita, Marcelo Bernardes, Ricardo "Tenente" Clementino, o maestro Luiz Claudio Ramos, Jorge Helder, Bia Paes Leme, Jurim Moreira, Mônica Salmaso, João Rebouças e Chico Batera no palco do Tokio Marine Hall, em São Paulo, onde se apresentam, ao lado de Chico Buarque, com a turnê "Que Tal Um Samba?" - Karime Xavier/Folhapress

"Existe uma sacralização em torno do Chico, e não é ele que contribui para isso. O Chico é um cara muito cidadão, muito simpático, muito coerente. O envolvimento que ele tem com as coisas, com as pessoas e com tudo que está acontecendo é real", afirma Tenente.

"Essa é a pergunta que não quer calar", dispara Marcelo Bernardes, 66, rindo, sobre quando será a próxima turnê e se a atual pode ser a última do grupo. "Do Chico eu não sei, mas a minha… Se eu pensar na hora que tenho que subir a escada, por exemplo, eu vou achar que é a última", brinca Chico Batera. "A gente pode dar um palpite, mas o palpite sempre pode se confundir com o desejo", diz Jorge Helder. "A gente sempre está estimulando o Chico a esticar, a fazer mais shows. Coitado, ele está sempre em minoria", brinca João Rebouças, 65.

"A sensação que eu tenho é a de que o Chico gosta mais da solidão da criação do que da exposição do sucesso", pondera Tenente. "Acho que ‘Que Tal Um Samba?’ foi uma forma de ele se solidarizar com o momento político que o Brasil estava passando. Foi um resgate da nossa vida musical, política e social. Já que está tão difícil, vamos sambar, buscar um jeito de mudar isso", diz. "Se o ‘Francisco’ [a turnê] foi um momento em que a gente estava saindo de um período conturbado e aprendendo a ser democráticos, ‘Que Tal Um Samba?’ talvez tenha sido, de novo, o resgate de uma democracia. E era o Chico Buarque que estava nisso outra vez. Aos 78 anos. Você não acha maravilhoso?"

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