Mônica Bergamo

Mônica Bergamo é jornalista e colunista.

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Descrição de chapéu Gal Costa

Gal era reservada e merece ser respeitada em seus desejos, diz Adriana Calcanhotto

Cantora fala sobre sua nova turnê, 'Errante', brinca que até Gilberto Gil passa perrengue na estrada e revisita seu início na música

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A cantora Adriana Calcanhotto, com vestido de feito de escamas do peixe corvina, da estilista Danielle Jensen, na Comedoria do Sesc Pompeia, em São Paulo Bruno Santos/Folhapress

Um mico inacreditável. De todas as conclusões possíveis, essa é a primeira evocada por Adriana Calcanhotto ao rememorar a noite em que adentrou um dos camarins do Canecão, no Rio de Janeiro, para se encontrar com Gal Costa pela primeira vez. Era o início dos anos 1990 —talvez uma sexta-feira daquele começo de década, arrisca ela, lembrando que Gal, uma candomblecista, estava encoberta por vestes brancas.

"Ela me recebeu, sabia que era eu. Estava sozinha no camarim", conta a gaúcha, que à época já tinha lançado seu primeiro disco, "Enguiço". "A gente se cumprimentou, mas eu fiquei olhando para o chão, muito tímida. Duas tímidas, duas librianas, duas sem assunto. Aí a gente ficou uns dois minutos olhando para o chão, assim [com a cabeça abaixada]. ‘Então tá, Gal’ [despediram-se]", segue com a anedota, aos risos.

"A primeira vez foi isso, não teve assunto. Mas teve muito, muito afeto. Tudo o que não foi dito, foi sentido. E, a partir daí, todos os encontros eram essa coisa que parece que você esteve com a pessoa ontem, e dali você parte sem muitas palavras. A Gal não era um negócio de conversa, era silêncio ou canto."

A cantora Adriana Calcanhotto, com vestido de feito de escamas do peixe corvina, da estilista Danielle Jensen, na Comedoria do Sesc Pompeia, em São Paulo - Bruno Santos/Folhapress

As décadas de contemplação e cantoria entre as duas renderam a Adriana, no início deste ano, um convite para estar à frente do espetáculo "Gal: Coisas Sagradas Permanecem", articulado pelo produtor Marcus Preto após a morte da baiana. A ideia surgiu num momento em que Adriana se preparava para lançar seu mais recente álbum, "Errante", e iniciar uma turnê no Brasil e em Portugal. Todos os planos se fundiram.

"Eu tive muita sorte de poder encaixar a turnê da Gal quando o Marcus me chamou. Até fiz uma certa ginástica com as datas do ‘Errante’", conta ela, que praticamente emendou os shows do tributo à etapa portuguesa da turnê.

"Foi uma coisa diferente de tudo. Meio que me senti uma intermediária entre a Gal e os fãs dela —eu me incluindo entre eles. E o mais importante foi ter mergulhado de novo no universo dela, a tal ponto que o algoritmo [das redes sociais] não me sugeria mais nada que não fosse Gal. Todas as minhas telas, todos os meus esquadros, todos os meus quadrados só eram ‘Gal’, ‘Gal’, ‘Gal’, ‘Gal’. Aquilo me ajudou, um pouquinho, a assimilar a informação nua e crua de que não tem mais Gal."

Fechada a turnê-tributo, Adriana Calcanhotto agora se volta por inteiro à edição brasileira de "Errante", iniciada em Porto Alegre, sua cidade natal, na semana passada. Depois de passar por São Paulo neste fim de semana, ela ainda seguirá com sua itinerância por Recife, Natal, Rio de Janeiro, Teresina, Sorocaba (SP) e Inhotim (MG).

Mais do que poder mostrar seu novo repertório, a cantora se diz entusiasmada com os músicos que a acompanham nesta temporada. O elenco traz Domenico Lancellotti na bateria, Guto Wirtti no baixo acústico, Jorge Continentino com saxofone, flauta e teclados, Diogo Gomes assinando trompete e flugelhorn, Marlon Sette no trombone e Pedro Sá na guitarra.

"A gente tem uma coisa que, quando eles tocam juntos, todos eles tocam melhor ainda. É muito contagiante", afirma sobre a trupe. "E aconteceu uma coisa que eu não tinha vivido ainda, que são músicos mais jovens que chegam, mesmo quando é um substituto por uma noite ou por um ensaio, e sabem os solos porque ouviram na rádio. O cara chega e toca ‘Esquadros’ porque já conhece."

Honrando a capa do disco que batiza a turnê, construída a partir de sete passaportes e dezenas de vistos de viagem seus, a cantora diz apreciar a agitação e a rotina de pontualidade militar que vêm junto com uma temporada. "Eu gosto, tenho que gostar. Mesmo das coisas que eu não gosto, eu tenho que gostar. Elas fazem parte. A estrada não é diferente da vida, só é muito mais intensa."

A cantora Adriana Calcanhotto, com vestido de feito de escamas do peixe corvina, da estilista Danielle Jensen, na Comedoria do Sesc Pompeia, em São Paulo - Bruno Santos/Folhapress

Ela brinca que nem mesmo alguém da estatura de Gilberto Gil escapa das intempéries de uma turnê. "Tem coisas que eu achava que não aconteceriam com ele na estrada, porque ele é o Gilberto Gil. E ele é mesmo o Gilberto Gil, mas a estrada é a estrada", diz, relembrando as apresentações que fez como convidada do cantor no ano retrasado.

No trajeto entre um dos shows, Gil e toda a sua equipe ficaram trancados para o lado de fora do ônibus que os transportava. O motorista tinha ido ao banheiro, e a produção, sem saber, ficou ensandecida. "Quando você vê que o Gilberto Gil está fora do ônibus, querendo entrar, você pensa: ‘meu Deus’", conta Adriana, rindo.

Filha de uma bailarina e de um músico, a artista de 57 anos diz considerar fundamental para a sua trajetória ter crescido em um ambiente tão efervescente. Sua mãe era também professora, característica que ela aponta como necessária para que houvesse um senso de ordem em seu lar. "Não era uma casa de malucos, mas era uma casa de artistas", brinca.

"Minha mãe foi casada com músicos e teve filhos músicos. Aí me dou conta: eu não sei música, mas eu sei músico [risos]. É por isso que eu sou tão feliz lá naquela banda, porque eu sei as pessoas, eu sei o que é músico. Aquilo é o meu habitat."

Ainda pequena, ganhou da avó seu primeiro instrumento, um violão. O presente também incluía as aulas para que aprendesse a tocá-lo. "Aí veio aquele professor que só gostava de João Donato e Tom Jobim, dois pianistas [risos]. Era um negócio, ele só gostava disso! E eu comecei realmente a não gostar. Ele me traumatizou com ‘Estrada do Sol’, queria que eu tocasse, mas eu não conseguia. Larguei o violão."

Por sorte, o rompimento não foi definitivo. Entre idas e vindas com o instrumento, Adriana passou a explorar os acordes de que ainda se lembrava e a fazer as suas primeiras composições. Tom Jobim e João Donato também reconquistaram a sua simpatia.

Mais tarde, já adulta e cantora, Donato assinaria uma das faixas de seu primeiro trabalho, a música "Naquela Estação", sucesso que é revisitado na atual turnê. "Ele está na minha vida desde sempre", afirma sobre o artista, morto no dia 17 deste mês, aos 88 anos. "Fiquei contente de ter voltado a essa música, depois de muitos anos, no show certo. Não queria tocá-la de qualquer maneira."

Uma memória específica do pianista arranca um riso de Adriana. "Uma vez, ele me mandou mensagem: ‘Vamos encontrar? Preciso ir aí’. Eu estou entendendo que ele quer tocar. Marcamos." No dia combinado, João Donato chegou à sua casa com uma sacola de supermercado em mãos. "Você vai me ensinar a fazer chimarrão, eu estou namorando uma gaúcha", disse ele à cantora.

"Eu esperava tudo, menos isso. Nunca pensei que eu teria qualquer coisa para ensinar ao João Donato", conta, gargalhando. "Ele estava apaixonado, aquilo tinha uma urgência. ‘Você vai me ensinar a fazer chimarrão!’. Ele era um amor, era um menino."

A cantora Adriana Calcanhotto, com vestido de feito de escamas do peixe corvina, da estilista Danielle Jensen, na Comedoria do Sesc Pompeia, em São Paulo - Bruno Santos/Folhapress

O riso incontido dá lugar a lágrimas quando Adriana reflete sobre todos os grandes nomes da música brasileira que morreram nos últimos meses. "A gente não se prepara. Está duro, sabe?", diz, fazendo uma pausa antes de recobrar a palavra. "Bem duro."

"Fica um legado gigantesco deles. Deles, artistas extraordinários, pessoas inacreditáveis", continua. "É [uma perda] pessoal e é uma perda para o Brasil. Acho que o nosso papel, enquanto a gente está aqui, é não deixar que esse legado desapareça. É ficar cantando eles, é gravar o Erasmo, é fazer o show da Gal, é levá-los adiante. É deixar eles aí, vivos."

À coluna, Adriana diz lamentar o fato de Gal ter sua vida pessoal tão exposta após a sua partida, dadas as recentes acusações contra sua mulher, Wilma Petrillo. Em reportagem publicada pela revista Piauí, a viúva, responsável por gerenciar a carreira da cantora, é associada a golpes financeiros, práticas de assédio moral e ameaças a terceiros.

"Eu acho péssimo, porque ela era reservada. Quando uma pessoa não quer expor a sua vida, ela não quer expor a sua vida. Ela não gostava de expor a vida dela, nunca gostou", diz. "A Gal Costa era dessas pessoas mais reservadas, e acho que ela merece ser respeitada neste desejo. Aliás, em todos."

Adriana é cantora, compositora, ilustradora, professora na Universidade de Coimbra, em Portugal, e uma porção de outras coisas, mas diz não gostar de ser apresentada como cantora, compositora, ilustradora e professora —além de uma porção de outras coisas. "O que me motivam nessas coisas são os links entre elas. As coisas são mais fluidas, acho. Não me vejo assim [separadamente] como cantora, compositora, ilustradora, não sei o quê, arranjadora, 'dora', 'dora', 'dora'. Impostora fica melhor", diz, em tom jocoso.

A artista se mostra otimista em relação aos rumos do país sob Luiz Inácio Lula da Silva (PT). E defende que o atual governo tenha mais tempo antes de começar a ser cobrado. "Eu encaro que está tudo no caminho e que é preciso ter um pouco de calma depois de tudo o que aconteceu", diz.

"Esse governo que entrou pegou destroços de um desgoverno. Não tenho a menor capacidade de pensar em cobrar nada antes de um tempo", afirma, citando a tragédia Yanomami e os ataques de 8 de janeiro como episódios desafiadores para um início de gestão.

"Mais do que otimista, eu sou ingênua. Gostaria de pensar que o centrão, em determinadas matérias, poderia pensar no Brasil. Isso já seria uma grande coisa", pondera. "Mas eu prefiro cantar. Não para fugir disso, mas, cantando, eu digo melhor essas coisas."

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