Mônica Bergamo

Mônica Bergamo é jornalista e colunista.

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'Não há cura, estarei sempre entre a vida e a morte', diz Suleika Jaouad

A escritora nova-iorquina descobriu aos 22 anos que sofria de leucemia mieloide aguda; ela vai lançar na Netflix 'American Symphony', produção em que retrata o seu tratamento

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"Minha doença não tem mais cura. Eu terei que conviver com ela, monitorando-a pelo resto da minha vida, seja ela longa ou curta", me diz a escritora nova-iorquina Suleika Jaouad em entrevista por Zoom, da mesma maneira suave e contundente com que falou no seu TED Talk de 2019, intitulado "O Que a Possibilidade da Morte me Ensinou sobre a Vida", que já teve quase 5 milhões de visualizações.

Quando fez a palestra de 17 minutos, estava curada há mais de cinco anos, tempo normalmente esperado pelos oncologistas para dar alta a uma paciente de câncer. Elegante, de macacão de seda preta, sapato de salto e seus longos cabelos castanhos presos em um coque soltinho, Suleika começa contando que, em 2011, estava "pronta para entrar no mundo real". Tinha acabado a faculdade e se mudado para Paris, onde tinha arrumado seu primeiro emprego. Seu sonho era virar correspondente de guerra.

A escritora Suleika Jaouad - Beowulf Sheehan/Divulgação

Mas o destino tinha outros planos, e Suleika estaria, em pouco tempo, vivendo uma guerra bem diferente da que tinha imaginado. A zona de conflito era seu próprio corpo. Tudo começou com uma coceira que não dava trégua. Suleika comprou lençóis escuros para disfarçar o sangue que saía durante a noite, quando se coçava até se ferir. Depois veio o cansaço, que ela atribuía à vida desregrada que levava, com baladas que entravam madrugada adentro e cocaína para segurar a onda no trabalho.

Tinha 22 anos, um namorado alto, lindo, sexy e apaixonado e nenhuma pretensão de economizar sua juventude com um estilo de vida moderado. Mas os sintomas foram ficando impossíveis de disfarçar, e então, finalmente, tomou coragem de voltar para o seu país e ir em busca de um diagnóstico. Não poderia ter sido pior.

"Os médicos disseram, na minha frente e na frente dos meus pais, que eu tinha uma forma rara de leucemia e, mesmo que encontrasse um doador de medula compatível, minha chance de sobrevivência a longo prazo seria de 35%."

Suleika é filha de um tunisiano com uma suíça, que se conheceram e se apaixonaram nos Estados Unidos. Ela nasceu em Nova York e viveu sempre rodeada de seus parentes paternos, todos muçulmanos. Mas, como sua mãe não vinha da mesma comunidade, encontrar um doador compatível poderia ser muito mais difícil do que para outras pessoas.

"Por sorte, tenho um irmão mais novo, e ele aceitou ser meu doador." Foi depois disso que Suleika embarcou na batalha mais árdua e desafiadora de sua vida. "Não sabia mais como conviver no mundo das pessoas saudáveis, mas também não pertencia mais ao grupo dos doentes terminais, que, depois de tudo que passei, foi onde encontrei meus amigos mais íntimos, aqueles com quem conseguia conversar, ou não conversar, sem me sentir uma estranha", disse.

Durante parte de sua primeira disputa com o câncer, Suleika escreveu uma coluna semanal no jornal New York Times chamada "Life, Interrupted" (vida, interrompida, em tradução livre), contando como era viver com uma doença tão debilitante com tão pouca idade. Durou dois anos, entre 2012 e 2014, e acabou transformada em uma série de vídeos com o mesmo nome premiada com um Emmy em 2013.

"Foi um luxo publicar num jornal tão prestigioso como o New York Times, mas o tema não podia ser mais distante do que eu tinha em mente quando decidi ser jornalista", lembra ela, agora com o cabelo curtinho, voltando a crescer depois de ter caído pela segunda vez por causa da quimioterapia a que teve que se submeter para o transplante.

Quando foi considerada curada, em 2017, terminou um namoro de anos e começou um flerte com um amigo da adolescência, o músico Jon Batiste, que conhecia desde os 13 anos, quando ambos fizeram um acampamento para jovens músicos. Suleika tocava violoncelo e Jon, que nasceu e morava em Nova Orleans, era pianista. Quando se reencontraram, em Nova York, Jon Batiste já era um músico conhecido no meio do jazz, viajava fazendo turnês com sua banda e deixou claro, logo no início do relacionamento, que tinha chegado para ficar.

Mas Suleika nem sabia mais como ela mesma era depois de tanto sofrimento e tanto tempo focada só em sobreviver. Decidiu viver um pouco antes de entrar num novo romance. Comprou uma kombi amarela e branca, igual à do filme "Pequena Miss Sunshine", pegou seu cachorrinho chamado Oscar e saiu pelas estradas dos Estados Unidos com um mapa com o endereço dos amigos que tinha feito no hospital. Em grande parte das visitas, se encontrava com os parentes dos amigos, já que alguns deles não tinham sobrevivido.

Essa jornada, que ela chama de uma "reintegração a uma vida em tudo irreconhecível" virou o tema de seu primeiro livro, "Memórias de Uma Vida Interrompida", lançado nos Estados Unidos em 2021 e, no Brasil, pela editora Sextante, no ano passado.

Entre a publicação em inglês e o lançamento da tradução aqui, a doença voltou. "Comecei a me sentir cansada antes mesmo do lançamento nos Estados Unidos, mas estávamos nos primeiros dias da pandemia e todo mundo evitava ir a consultórios médicos ou prontos-socorros a menos que fosse absolutamente necessário."

"Eu tinha certeza de que a leucemia tinha voltado, mas os médicos não acreditavam, eu era considerada curada, já havia passado quase 10 anos desde o primeiro transplante. Tive que insistir muito para conseguir uma biópsia de medula óssea e no dia que fui fazer a equipe médica me disse que fariam isso só para aliviar a minha ansiedade".

Mas não era ansiedade, e sim, o câncer. Em choque com o resultado, Suleika reingressou ao "reino dos doentes", como ela se refere ao universo das pessoas que vivem em torno de um diagnóstico tão dramático. "Eu tive o benefício da experiência de ter passado por isso antes e já estava com 32 anos, não mais 22. Mas, dessa vez, meu prognóstico é muito diferente", afirma.

A volta da leucemia tirou de Suleika qualquer possibilidade de se curar completamente. Os 35% de chance de sobreviver que tinha da primeira vez que foi diagnosticada caíram drasticamente. Na verdade, nenhum médico arriscou dar um número para esta estatística, e todos, assim como ela, sabem que tende a zero. "Não há cura à vista para mim, continuarei navegando para sempre entre esses dois mundos, o das pessoas saudáveis e o das pessoas doentes."

Suleika fez um novo transplante no dia seguinte de seu casamento com Jon Batiste, realizado na casa em que os dois já moravam, no Brooklyn, com apenas quatro convidados. "Jon alugou um piano de cauda de surpresa para mim, e, no dia seguinte, entramos como marido e mulher na ala de oncologia do hospital."

Digo que eles não podem pular a lua de mel, e Suleika responde que sabe que não, e que o Brasil é um forte candidato a ser o escolhido do casal, quando ela estiver bem o suficiente para fazer viagens mais longas.

Jon Batiste esteve no país em maio, foi o principal convidado do festival C6 Fest, e aproveitou a vinda para tocar com um de seus ídolos brasileiros, a cirandeira Lia de Itamaracá. Seu outro ídolo nacional, o multi-instrumentista Hermeto Pascoal, estava justamente em Nova York.

Já faz mais de um ano do segundo transplante de medula de Suleika, que, mais uma vez, teve a sorte de contar com seu irmão doador e compatível. Desde que isso aconteceu, ela e seu marido passaram a filmar, em segredo, tudo o que acontecia na vida dos dois, e como a alternância entre o glamour da vida de Jon fora de casa e a dureza do que vivia em sua intimidade acabaram por inspirá-lo a compor uma sinfonia.

O resultado dessa jornada virou o documentário "American Symphony", apresentado ao público no festival de cinema de Telluride, em agosto. Lá, teve os direitos comprados pela produtora Higher Ground, de Barack e Michelle Obama, e pela Netflix, que vai exibi-lo no mundo todo a partir da próxima quarta (29).

Dirigido por Matthew Heineman, que teve um documentário anterior indicado ao Oscar em 2016 chamado "Cartel Land", "American Symphony" vem recebendo críticas positivas em todos os festivais de cinema em que foi exibido. Em um deles, foi descrito como "uma das maiores histórias de amor vistas no cinema".

Mas, para Suleika, o amor que ela vive com Jon não é a mensagem mais importante deste documentário. "Minha maior ambição é aumentar a conscientização do que significa estar doente, tanto do lado do paciente quando do lado do cuidador", afirma. "E, mais importante, incentivar as pessoas a se registrarem como doadores de medula óssea, um dos poucos transplantes que podem ser feitos sem que o doador tenha que morrer para isso. É como uma doação de sangue bem mais comprida, relativamente indolor e que pode salvar uma vida."

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