Muniz Sodré

Sociólogo, professor emérito da UFRJ, autor, entre outras obras, de “Pensar Nagô” e “Fascismo da Cor”

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Muniz Sodré

A hora do estarrecimento

A promessa presidencial a uma facção evangélica é uma agressão sem precedentes à Constituição

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Três cenas aparentemente desconexas, mas todas com o estarrecimento nacional em comum: na primeira, o presidente da República, chorando, assegurava a líderes evangélicos que conduziria o país para onde eles desejarem; na segunda, uma sacerdotisa do culto afro-brasileiro reagia em Salvador à pretensão de se mudar o nome do tradicional e famoso parque das Dunas do Abaeté para "Deus Proverá", enquanto seu opositor, livro na mão, garantia ser "embaixador de Deus"; na terceira, um pastor pedia em Brasília a propina de "um quilo de ouro".

O presidente Jair Bolsonaro e o ministro Milton Ribeiro (Educação) durante cerimônia no Palácio do Planalto, em Brasília - Adriano Machado - 2.fev.22/Reuters

O espantoso não é só o conteúdo das cenas, mas o silêncio das panelas. Há uma aberração nacional em maré montante. A mídia despertou, porém, de modo geral, o noticiário se limita a registrar os aspectos estapafúrdios de um macrofato, mais escandaloso do que fragmentos de discurso ou de ação.

Por um lado, é como se a imprensa, atolada no grau zero de expectativa de alguma relevância por parte do governo, dissesse a si mesma e ao público que uma realidade tão absurda dispensa suítes. Por outro, é o mesmo velho modelo de jornalismo que supõe comunicar a verdade, apenas reportando as sombras projetadas do fato social, que são os acontecimentos noticiosos.

Algo mudou, entretanto. Esse modelo seria viável em sociedades civil e plenamente articuladas, isto é, aquelas em que é estável a relação fiduciária das instituições com o corpo nacional. Essa é a condição republicana, assegurada não só pelo formalismo das linhas constitucionais, mas, principalmente, pelo exercício da confiança pública em seus dispositivos. Num quadro social desses, os acontecimentos podem simplesmente circular sob a guarda de um pacto de credibilidade entre interlocutores, porque existe um consenso mínimo sobre o verdadeiro ou o verossímil.

Agora, porém, a estabilidade civil encontra-se sob o ataque de extremismos, que conjugam indiferença à verdade e à vida humana com retropias escusas. O que é mesmo chocante: o neoliberalismo brasileiro é um neopentecostalismo de resultados. Com a desmoralização de instituições republicanas ao fundo, a promessa presidencial a uma facção evangélica é uma agressão sem precedentes à letra do único livro-guia da República: a Constituição.

Ainda que não levado a sério, um desvario desses produz efeitos reais no nível das políticas de cotidiano. Abre a porta a uma escandalosa confusão entre Estado e religião em áreas práticas, donde a sua linha direta com episódios como o do Abaeté e o do quilo de ouro. Não ficou por menos a notícia do gabinete paralelo de pastores no Ministério da Educação. Não basta mais, porém, "noticiar": é hora de libelos estarrecidos, é hora de mobilização cívica.

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