Muniz Sodré

Sociólogo, professor emérito da UFRJ, autor, entre outras obras, de “Pensar Nagô” e “Fascismo da Cor”

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Muniz Sodré

Distorcendo o jogo

O lugar onde a justiça social se faz visível pelo apito na boca do árbitro

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Há algo além de simples incidentes colaterais na multiplicação de episódios de violência, de tiros a bomba caseira, por parte de torcidas de futebol em várias capitais brasileiras.


Não é nenhuma novidade enxergar no jogo da bola um lugar de representações sociais que circulam no campo ideológico das diferentes classes na formação social brasileira. Simbolicamente, ele sempre capitalizou aspectos de uma ideologia populista difusa, em que se misturam anseios de entretenimento com ascensão social.

Horas antes do clássico, uma briga entre torcidas de Atlético-MG e Cruzeiro deixou pelo menos duas pessoas baleadas, uma delas em estado grave, no bairro Boa Vista, Região Leste de Belo Horizonte - 5.mar.22/Reprodução/Redes sociais


Historicamente, ao profissionalizar-se e "escurecer", o futebol foi assimilando negros e pardos, os grandes constituintes das classes pobres. Mais do que qualquer outro, esse jogo mobiliza a energia psíquica de indivíduos e grupos, por vezes à maneira de uma encenação teatral, como se fosse ele próprio um objeto deslocado de tendências político-sociais frustradas. Nos momentos de Copa do Mundo, o jogo produz sempre um mito de ajustamento identitário no nível da nação. Diz-se que futebol seria muito mais criatividade, habilidade pessoal e malícia, "coisas que pouquíssimos europeus possuem".


A globalização, com o fluxo empresarial de jogadores e técnicos de um lado para o outro, tem concorrido para atenuar o ufanismo. A corporeidade atlética é hoje mais neoliberal do que nacional. Do lado das torcidas, algo parece não ter desaparecido: o mito de nação embutido no jogo é mais claro do que qualquer outra ideia cívica.


Ao contrário das obscuras engrenagens do Estado, a justiça social se faz visível, de imediato, pelo apito na boca do árbitro. Torcer é como enraizar-se em paixão por um sujeito coletivo, o time de cada um. Isso sempre houve, só que o torcedor de agora, distante da realidade milionária e midiática dos jogadores, tende a identificar-se mais com a "bolha" fechada em torno de um clube, como numa rede social ou, no limite, como numa célula extremista.


Essa condição não significa violência em si mesma, que só se revela em sua aparição concreta. Mas pode começar na separação de uma minoria e nas singularizações do excesso. Na bolha, como na torcida, o um é múltiplo, o grupo se faz uno e compacto. Mas o que em campo se extravasa como paixão de um público pela arte da bola torna-se, na bolha, o clímax de um ressentimento polarizado. Não há mais "torcida" e sim distorção odienta de afeto.


Futebol é tão só pretexto para que a violência se autonomize, reduzindo o tempo de um cotidiano insuportável à expressão mais simples de um instante, o ato destrutivo. Isso talvez ainda seja parte de um jogo cênico, de vocação delituosa. Apenas falta a esse ator a coragem do bandido.

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