Brasil chega a 400 mil mortos por Covid com inépcia do governo federal

Com atrasos e desinformação, mais de 100 mil brasileiros morrem em 36 dias; ritmo de óbitos dobrou em 2021

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Velas e cruzes colocadas diante do Congresso Nacional, em Brasília, prestam homenagens às vítimas da Covid-19

Velas e cruzes colocadas diante do Congresso Nacional, em Brasília, prestam homenagens às vítimas da Covid-19 Ueslei Marcelino/Reuters

São Paulo e Gonçalves (MG)

Com o desprezo do governo federal e da população pelos riscos da Covid-19, passando pela insistência do presidente em investir em remédios sem eficácia contra a doença até a demora na compra de vacinas, entre outros tropeços, o Brasil ultrapassou nesta quinta-feira (29) a marca de 400 mil mortes provocadas pelo coronavírus, 14 meses após a detecção da doença no Brasil e apenas 36 dias depois de registrar 300 mil óbitos.

Às 12h41 desta quinta, o consórcio de veículos de imprensa formado por Folha, O Estado de S. Paulo, O Globo, G1, Extra e UOL registrava 400.021 mortes no país, com mais de 14,5 milhões de casos desde fevereiro de 2020. É o segundo maior saldo absoluto de mortos no mundo, superado apenas pelos mais populosos Estados Unidos (574 mil), onde a epidemia já dá sinais de declínio.

Em mortes por 100 mil habitantes, o Brasil já supera amplamente os EUA. São 191,6 mortes para cada 100 mil brasileiros e 176 óbitos para cada 100 mil americanos. O Brasil é o 11º no ranking mundial de mortes por 100 mil habitantes (não consideradas aqui nações com populações muito pequenas).

Às 20h, as mortes registradas em 24h chegaram a 3.074 e os casos a 69.079. Com isso, o país chegou a 401.417 óbitos e a 14.592.886 pessoas infectadas com o Sars-CoV-2 desde o início da pandemia.

A média móvel de mortes, após dias de queda, voltou a apresentar crescimento e chegou a 2.523. Já são 44 dias com a média acima de 2.000 mortes por dia.

Sob a premência dos números e com a pressão de uma CPI para investigar sua gestão da pandemia, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) tem sido aconselhado a atenuar seu discurso a respeito da maior crise sanitária em cem anos.

Enquanto cruzavam as marcas de 100 mil cadáveres (em 8 de agosto de 2020), 200 mil (em 7 de janeiro deste ano) e de 300 mil (em 24 de março), os brasileiros ouviam da maior autoridade do país que o Sars-Cov-2 é uma "fantasia da grande mídia", uma "gripezinha" e um "mimimi".

As frases de Bolsonaro coincidem com a escalada de mortes, e, com as falhas de gestão em todos os níveis e o fatalismo de parte da população, ajudam a explicar por que o Brasil virou preocupação mundial na pandemia.

A pequena inflexão no discurso presidencial, simbolizada pelo uso esporádico em público da máscara de proteção que tanto criticava e pela ênfase na vacinação ainda podem estancar o agravamento da crise, mas não são suficientes, a essa altura, para reverter o quadro nem apagar um saldo de mortos que supera, por exemplo, o total das baixas de soldados britânicos na Segunda Guerra Mundial.

Colapsos simultâneos dos sistemas de saúde pelo país já ocorrem, com falta de insumos que vão de oxigênio a medicação para intubação. Acelerar a vacinação, com as encomendas de vacinas tardiamente fechadas e as entregas frequentemente atrasadas, ainda não é uma realidade.

"Estamos fazendo e vamos fazer de 2021 o ano da vacinação dos brasileiros. Somos incansáveis na luta contra o coronavírus", disse em pronunciamento em rede nacional no fim de março. Nem sempre foi assim.
Com a Coronavac, vacina que vem garantindo a imunização dos brasileiros, o presidente colocou em dúvida a eficácia da droga por sua origem chinesa (algo que o ministro Paulo Guedes ecoou nesta semana) e travou guerra com o governador João Doria (PSDB), seu ex-aliado de palanque que adquiriu o produto.

Os primeiros efeitos da vacinação começam a emergir quando a pandemia já se encontra aprofundada, com grande circulação do vírus pelo país, e um cronograma incerto pela frente.

Três ministros da Saúde tentaram conduzir a crise: dois deles —Luiz Henrique Mandetta e Nelson Teich— saíram do posto por divergências com Bolsonaro. O terceiro, o general do Exército Eduardo Pazuello, mais alinhado ao presidente, ficou quase um ano no cargo. Saiu pela má gestão e como um dos investigados na CPI da Covid-19.

Cabe agora ao médico paraibano Marcelo Queiroga, o quarto ministro, conter a múltipla crise. Com discurso mais modulado, em que reafirma seu apreço à ciência, Queiroga ainda não promoveu grandes mudanças na gestão da pandemia.

O país, em nenhum momento, conseguiu algum grau duradouro de controle sobre a doença. Mesmo ao pairar em patamares mais baixos, como de setembro a novembro de 2020, com médias móveis de mortes variando acima de 300 óbitos por dia, o Brasil registrava, em média, mais de 20 mil casos diários.

O rastreamento e isolamento de casos da doença (e de suspeitos), pilares para o controle e preconizado pela OMS (Organização Mundial da Saúde) desde o início, nunca foram colocados em prática no Brasil. Até mesmo a testagem para diagnóstico continua pouco acessível para muitos, segundo especialistas.

Apesar do cenário já grave no ano passado, o maior volume de óbitos veio em 2021. Em menos de quatro meses completos do ano atual, o Brasil já soma 203.367 mortes. Em 2020 inteiro (a primeira morte foi registrada em março), foram 194.975 óbitos.

Em parte, de acordo com pesquisadores, a maior letalidade se deve às novas variantes do Sars-CoV-2, com maior potencial de infecção e, consequentemente, com disseminação mais rápida. Uma delas é a P.1, identificada inicialmente em Manaus, capital que acabou servindo como sentinela para a gravidade das duas ondas —até aqui— da pandemia.

Somam-se a isso as ações ou a demora em agir do governo Bolsonaro. "Tudo agora é pandemia. Tem que acabar com esse negócio. Lamento os mortos, todos nós vamos morrer um dia. Não adianta fugir disso, fugir da realidade, tem que deixar de ser um país de maricas”, disse ele, no dia em que o país registrava mais de 162 mil mortes, em novembro de 2020.

O governo brasileiro também andou na contramão do mundo ao dar status de remédio que cura à cloroquina, integrante do chamado "Kit Covid", mesmo diante de estudos padrão-ouro (com grupo controle, randomizados e duplo-cego) mostrando a ineficácia do medicamento.

Não bastassem as palavras e as indicações incorretas, o presidente constantemente desrespeitou regras sanitárias básicas, ao não usar máscara e promover e incentivar aglomerações com apoiadores. Algo, aliás, que continua a fazer.

Por fim, enquanto o mundo corria por vacinas, o governo brasileiro recusava ofertas de doses que poderiam ter começado a ser aplicadas ainda em 2020.

O presidente continua se recusando a ser inoculado, afirmando que só tomará a vacina após todos os brasileiros estarem imunizados. "Eu sou chefe de Estado, tenho que dar exemplo. O meu exemplo é este: já que não tem para todo mundo ainda, o mundo todo não tem vacina ainda, tome na minha frente", disse.

Nos bastidores, o assunto ainda é tratado com cuidados. O ministro da Casa Civil, general Luiz Eduardo Ramos, afirmou, sem saber que estava sendo gravado, que tomou escondido a vacina contra a Covid e que tenta convencer Bolsonaro a se vacinar.

“Tomei escondido, né, porque a orientação era para não criar caso, mas vazou. Eu não tenho vergonha, não. Tomei e vou ser sincero" afirmou Ramos. "Como qualquer ser humano, eu quero viver, pô. E se a ciência está dizendo que é a vacina, como eu posso me contrapor?”

Erramos: o texto foi alterado

O texto afirmava que a marca de 400 mil mortes foi atingida 37 dias depois das 300 mil mortes; na verdade, passaram-se 36 dias. O texto foi corrigido.

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