Nabil Bonduki

Professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, foi relator do Plano Diretor e Secretário de Cultura de São Paulo.

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Nabil Bonduki
Descrição de chapéu Mobilidade

Jornada do Patrimônio foi excelente, mas a memória de São Paulo está sendo destroçada

Evento voltado para aproximar a população das raízes da cidade parece distante das ações concretas implementadas pela prefeitura

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Nesse fim de semana ocorreu em São Paulo a 8ª Jornada do Patrimônio, criada em 2015 em nossa gestão na Secretaria Municipal de Cultura (SMC).

Evento anual voltado para a educação patrimonial com o objetivo de aproximar a população do patrimônio e da memória da cidade, a Jornada tem sido tão potente que se tornou uma política de Estado, com continuidade e aperfeiçoamento nas gestões subsequentes. Excelente em um país onde os governantes costumam apagar as marcas dos seus antecessores.

Com o tema "Tão perto, tão longe", a Jornada neste ano foi além do centro histórico, normalmente privilegiado na política e na educação patrimoniais. Buscou-se dar visibilidade a outras centralidades e regiões e a bens patrimoniais e práticas culturais que, em geral, sofreram apagamento pelo predomínio de uma visão elitista da memória e que só recentemente começaram a ser valorizadas.

Poste com as placas de rua
Esquina das avenidas Ipiranga e São João, no centro, que faz parte da memória cultural de São Paulo e ganhou placa do Departamento do Patrimônio Histórico - Rivaldo Gomes - 18.fev.2021/Folhapress

A própria forma como a programação da Jornada é organizada, a partir da abertura de um chamamento público aos interessados, permite que uma nova visão, latente na sociedade, possa emergir.

Pesquisadores, artistas, moradores, associações de bairro e coletivos que detenham vivências e agendas patrimoniais e que desejam ver compartilhadas e adotadas são chamados a apresentar propostas nas três tradicionais linhas do evento: visita a imóveis históricos, roteiros de memória urbana e oficinas culturais e palestras, que passam depois por uma curadoria do Departamento do Patrimônio Histórico da SMC.

Com essa metodologia, a Jornada trouxe à tona uma agenda relacionada à memória e ao patrimônio material e imaterial da cidade que a sociedade quer ver debatida, visibilizada e protegida. Novos públicos, atores e pautas entram em cena.

Neste ano, como sempre, foram propostas as tradicionais (e necessárias) visitas aos edifícios tombados, como os projetados por Ramos de Azevedo e Oscar Niemeyer no centro ou os casarões dos barões do café ou da indústria, como os da Dona Veridiana e dos Jafets.

Mas, dentre as centenas de propostas, nota-se uma presença muito significativa de atividades voltadas a resgatar a memória dos lugares da cidade que são referências para a população negra, indígena, periférica, LGBTQIAP+ e imigrante, assim como para regiões que estão fora dos roteiros tradicionais.

A presença negra na cidade foi resgatada por caminhadas pelo centro em espaços como a Igreja Nossa Senhora dos Rosário dos Pretos, os antigos Pelourinho e Morro da Forca, na Liberdade, pelos vestígios arqueológicos do Quilombo Saracura, indo até os bairros da zona leste onde a ancestralidade negra é mencionada pelo compositor Geraldo Filme.

A jornada recuperou personagens periféricos como a sambista Tia Cida dos Terreiros, uma das primeiras moradoras de São Mateus, que abriu o quintal de sua casa para que a comunidade tivesse um espaço de samba. Bairros como Sapopemba, Tremembé e até o distante Engenheiro Marsilac foram tratados como referências culturais.

A memória dos Queijadas, o primeiro movimento social da cidade que uniu a luta sindical com a defesa do meio ambiente foi visibilizada em um visita à antiga Fábrica de Cimento de Perus, que integra a agenda do movimento cultural do bairro.

Lugares que foram apagados, como os territórios da prostituição ocupados pelo alto e baixo meretrício na zona central e seu confinamento por 13 anos no bairros do Bom Retiro, hoje totalmente desconhecido pela maioria da população, foram revisitados.

Vários roteiros recuperam a presença dos imigrantes (antigos e recentes) no espaço da cidade, como a resistência dos judeus do Bom Retiro e a atual presença de muçulmanos e africanos no Brás. A memória e a resistência LGBTQIAP+ estiveram presentes em inúmeras atividades.

Isso tudo é maravilhoso e revela uma abordagem necessária para o patrimônio material e imaterial de uma cidade como São Paulo, que se caracteriza pela enorme diversidade cultural, étnica, racial e de identidade sexual.

Mas aquilo que se vê na Jornada do Patrimônio parece distante das ações concretas implementadas pela prefeitura. Enquanto a educação patrimonial forma cidadãos para compreender a importância do patrimônio, inexiste uma política pública eficaz que o proteja, na sua multiplicidade de manifestações.

Vejam: vários roteiros das Jornadas ocorreram no bairro do Bixiga, onde os vestígios dos quilombos se misturam com a presença da imigração italiana. O bairro foi tombado pelo município na gestão Erundina, sem regras muito claras. Tem fortes raízes culturais, expressas pela Vai-Vai, por vários teatros, pela festa da Achiropita e por uma ocupação cultural do espaço público.

Localizado entre a Paulista e o centro, tem grande interesse imobiliário, o que vem descaracterizando sua paisagem cultural e topográfica. Por essa razão, o Plano Diretor Estratégico (PDE) de 2014 o inseriu em um Território de Interesse da Cultura e da Paisagem (TICP), instrumento criado para compatibilizar a proteção à cultura e a paisagem com as transformações da cidade.

Ocorre que, após oito anos da aprovação do PDE, a prefeitura ainda não regulamentou o TICP, que deve ser acompanhado por um plano urbanístico, ambiental e cultural onde se definam normas específicas que devem orientar a ocupação do bairro e as intervenções que deveriam ser feitas.

Vila operárias, que integram a memória dos bairros fabris e dos trabalhadores da primeira fase da industrialização paulistana, estão sendo devoradas quando deveriam ser protegidas, como se viu na demolição da Vila Operária João Migliari, no Tatuapé, para dar lugar a um edifício do chamado "eixo platina".

A memória afetiva da cidade está sendo comprometida, nesse momento de verticalização de certas áreas da cidade, pela não implementação da Zona Especial de Proteção Cultural - Área de Proteção Cultural (Zepec-APC), criada pelo PDE de 2014 e regulamentada em 2015. O único espaço protegido por esse instrumento até o momento foi o Cine Belas Artes, na gestão Haddad.

A Zepec-APC visa proteger lugares e espaços e usos com significado afetivo, simbólico e religioso para a comunidade e para a memória da cidade, mesmo que não ocupem imóveis de interesse arquitetônico. Ao proteger o lugar e uso, esse instrumento compatibilizar o patrimônio com uma eventual transformação física.

Lugares como a casa da Tia Cida dos Terreiros, em São Mateus, visitada em uma atividade de Jornada, cinemas e teatro de rua, como o Itaú Augusta, bares, como a Mercearia São Pedro, e terreiros de candomblé podem ser protegidos do processo de transformação da cidade sem paralisá-lo através da utilização desse instrumento.

Se não for implementada uma política de patrimônio cultural na cidade, a memória que se busca valorizar através de eventos como a Jornada do Patrimônio ficará comprometida, e nem vestígios arqueológicos sobrarão para serem visitados.

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