Nina Horta

Escritora e colunista de gastronomia, formada em educação pela USP.

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Nina Horta

As comidas feias, o chef bigodudo e a sommelière do barulho

Foi dada a partida para você redescobrir 'la cuisine pauvre'

Pois bem, nessa longa vida já passei por modas aqui e ali, lembram-se do risoto de morango? De repente, a crise nos fez pobres de marré, marré, marré.

Qual a moda? Cozinhar em casa é mais saudável, você toca os alimentos, se conscientiza, sabe de onde tudo vem, cata matinhos nos trilhos do trem (sorry, minha amiga querida Neide Rigo), come cascas.

Ontem na TV, a criatura espremeu o limão, bebeu o suco e fez um bolinho de casca que o repórter achou divino. Ninguém se lembra de toda a farinha de trigo e do açúcar e do forno. Se é de casca, é barato e bom.

E não são novidades, tenho aqui um filme ótimo da Agnès Varda, "Os Catadores e Eu". Um documentário do ano 2000, lá se vão 18 anos, que mostra o aproveitamento das colheitas, das comidas feias, essa história toda que não dá mais para aguentar. Pautas. Até aparecer dinheiro, a pauta é essa.

A cineasta Agnès Varda, que mostra França simples em 'Os Catadores e Eu' - Jordan Strauss/Invision/AP

Mas o que eu queria mesmo dizer é sobre os convites para jantar. O amigo sabe que você não sai nunca e vai te levar ao que há de melhor na cidade. É uma viagem, o Uber treme ao parar na porta.

O motorista começou a olhar pelo retrovisor há algum tempo. Pergunta se é para parar ali mesmo. "Por supuesto", pois são a rua e o número pedidos.

O lugar parece uma garagem com portas de subir e baixar com um estrondo. Poucas mesas, o dono no fogão ou na espiriteira, nem sei, e quem chega se senta no pedaço de mesa que lhe aprouver, mesas comunitárias.

O menu já foi escolhido antes, pelo chef que o postou no Instagram. Bonito, já vai dar um livro de menus muito interessante. O garçom tem barba, belos dentes e se abaixa ao seu lado para explicar o menu.

Vê-se que é bastante inteligente e está fazendo gênero com aquele boné de trás pra diante. Há um velho como eu com a barba grande, branca, que tem como tarefa olhar para a frente.

De repente, como de uma caixa de surpresas e de molas, salta à sua frente aquela menina que só vai aos Michelins do mundo e fazia hora por ali antes do teatro. Alguém faz hora em garagem sem pintura antes do teatro? Parece que sim.

As pessoas que se sentam à nossa mesa parecem despreocupadas, mas consultam o vinho com interesse absoluto. E logo se vê que são connoisseurs, mastigam devagarinho, concentrados. Entendem de comida.

Só uma coisa me incomoda. Há um cheiro de peixe no ar que me preocupa, mas, quando chega à mesa, é fresco, e faz par com um molho de carne. Coisa que adoro, peixe com molho de carne.

Nem reconheço aquelas comidas pequetitinhas do prato, mas vou comendo, deliciosas, tudo combinando muito. O bigodudo é, com certeza, um grande chef. Nos confins do mundo.

E ontem alguém me deu um endereço de seu novo restaurante que ainda nem abriu. Vai ter uma sommelière do barulho, linda e sabida.

Estão pensando em batizar o lugar, para meu susto, de Bactéria, mas das boas, das que fazem bem. É isso, minha gente, foi dada a partida para você redescobrir "la cuisine pauvre". E boa.

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