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Descrição de chapéu Folhajus

O marco temporal é inconstitucional, nosso território é ancestral

A luta pela vida não pode ser somente uma pauta dos povos indígenas, precisa ser uma luta do povo brasileiro

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Samela Sateré Mawé

Indígena do povo Sateré Mawé, bióloga e ativista ambiental. É assessora de comunicação da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e da Articulação Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade (Anmiga)

O Brasil é terra indígena, mas o futuro dos povos indígenas do Brasil está em jogo com o marco temporal.

A tese está em tramitação no Supremo Tribunal Federal (STF) e o seu julgamento deve retornar no dia 7 de junho. O marco temporal estabelece que os nossos povos só têm direito à demarcação das terras que estivessem sob sua posse no dia 5 de outubro de 1988 —data da promulgação da Constituição Federal—, ou que naquela data estivessem sob disputa física ou judicial comprovada.

Dezenas de indígenas enfileirados com lanças nas mãos
Indígenas Waimiri-Atroari, do Amazonas, participam de cerimônia na aldeia Mynawa durante encontro para discutir os impactos do marco temporal - Lalo de Almeida - 17.set.22/Folhapress


Mas nossa história não começa em 1988. Nossos povos estavam aqui muito antes da Constituição, da criação de nossas fronteiras e da fundação do Estado brasileiro. Somos originários!

Somos mais de 305 povos indígenas no Brasil, estamos em todos os estados e biomas brasileiros. Desde a invasão dos europeus, temos que lidar com a violação dos nossos corpos e territórios, sempre lutando contra ataques e estupros.

A tese do marco temporal é defendida pelo agronegócio e por setores que pretendem explorar os territórios tradicionais. Ela fere a vida da população originária e representa um risco para a biodiversidade e para o ambiente, pois coloca em risco a demarcação de terras indígenas —inclusive daquelas que já foram demarcadas.

As terras indígenas demarcadas e as unidades de conservação são as regiões com maior preservação da biodiversidade, pois somos nós, povos indígenas, os principais guardiões dos biomas.

O marco temporal também chegou no Congresso Nacional por meio do projeto de lei (PL) 490/2007. Nesta quarta-feira (24), a Câmara aprovou requerimento de urgência para a tramitação do projeto.

O PL busca transferir a competência de demarcação de terras indígenas do Executivo para o Legislativo com o objetivo de inviabilizar as demarcações dos territórios ancestrais.

O PL também quer permitir a construção de rodovias, hidrelétricas e outras obras dentro das terras indígenas, sem consulta prévia às comunidades afetadas. Ações como essas têm impactos ambientais e culturais irreversíveis e contribuem para o extermínio dos povos indígenas.

Entendemos o território como uma extensão dos nossos corpos, não havendo diferença entre os seres humanos e as árvore, os animais e os rios. Sentimos na pele quando queimam e desmatam, matando as árvores e os seus moradores, seres vivos e encantados.

Quando dragas de garimpo ou hidrelétricas bloqueiam os rios sagrados, é como se entupissem nossas veias e artérias. Grileiros, fazendeiros e pistoleiros invadem nossos territórios, nos ameaçam e nos matam com o intuito de usufruir dos nossos recursos.

O marco temporal representa tudo isso. É uma tese perversa, que legitima a violência contra os nossos corpos-territórios. Há sangue indígena nas mãos e na ponta das canetas dos ministros.

O reconhecimento dessa tese representaria uma inversão de papéis: o colonizador viraria dono da terra, enquanto o indígena seria visto como invasor.

O marco temporal nega a presença dos nossos povos neste território. Nega nossas práticas de subsistência, a nossa ciência, o nosso canto, nossa pintura e a nossa culinária.

Além disso, essa tese ignora que muitos indígenas foram assassinados e expulsos de seus territórios ancestrais. Portanto, não poderiam estar nas suas terras sagradas na data da promulgação da Constituição.

Sobretudo, o marco temporal é inconstitucional. O artigo 231 da Constituição Federal garante aos povos indígenas o direito originário sobre as terras que tradicionalmente ocupam:

"Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens."

Segundo a nota técnica da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) sobre o marco temporal, as terras tradicionalmente ocupadas pelos indígenas são a principal condição da manutenção de sua sobrevivência física e cultural.

Para os povos indígenas, não existe dignidade sem suas terras. É nelas onde estão os recursos necessários para o seu desenvolvimento econômico e onde têm liberdade para expressar suas culturas, tradições e espiritualidades.

O direito à terra é um direito fundamental, inalienável e imprescritível. A sensação que fica é que o Estado desrespeita sua própria Constituição, e que os não indígenas violam as leis criadas por eles mesmos, mudando-as e manipulando-as quando lhes convém.

Vivemos sob a lei dos não indígenas, mas todos vivem sobre nossas terras.

A luta pela vida não pode ser somente uma pauta dos povos indígenas. Precisa ser uma lutado povo brasileiro, que preza pela mãe terra, pelos biomas, pela Amazônia, assim como nós.

A votação sobre o marco temporal no STF está prevista para 7 de junho, e os povos indígenas realizarão uma mobilização em Brasília do dia 5 ao dia 8 do mesmo mês. Juntos, estamos mobilizados para que nossas pautas sejam ouvidas e atendidas pelo Supremo.

Pela justiça climática, pelo futuro do planeta, pelas vidas indígenas, pela democracia, pelo direito originário e ancestral, pelo fim do genocídio, pelo direito à vida e por demarcação já, nós, povos indígenas, gritamos: não ao marco temporal!

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