Boicotes comerciais são recorrentes. Após o Massacre de Santa Cruz no Timor-Leste em 1991, Portugal boicotou a importação de produtos indonésios. Na década de 80, mais de 200 empresas americanas cortaram os elos comerciais com a África do Sul, em protesto contra o apartheid. O Boston Tea Party de 1773, uma ação de protesto comercial, serviu de estopim da independência dos EUA.
Mas no atual contexto hiperglobalizado e conectado, boicotes comerciais e financeiros deixam de ser manifestações de desagrado e atingem proporções apocalípticas. Sem enviarem um único soldado para o teatro de guerra, países ocidentais estão sufocando a economia russa e neutralizando os privilégios pessoais de Putin e de sua entourage por meio de boicotes comerciais, sanções econômicas e desinvestimentos financeiros. O presidente russo poderia estar pronto para a Terceira Guerra Mundial, mas não estava preparado para a primeira guerra mundial financeira.
Estes instrumentos de oposição econômico-financeira têm sido eficientes como argumento de guerra. Mas são mais reativos do que morfológicos, mais voltados para a mudança curto prazista do que para transformações estruturais, mais moralistas e espontâneos do que racionais e prudentes. Na última semana, em pequenos grupos de Telegram dos quais faço parte, representantes de governos e de think-tanks europeus perguntavam que outros tipos de sanções poderiam aplicar ou propor, como se a guerra fosse um jogo de tabuleiro.
Além disso, o boicote pode também prejudicar o boicotador. A BP, que decidiu vender os 20% que detinha na gigante petroleira Rosneft, irá perder dinheiro com a saída atabalhoada e apressada. A Shell e a Equinor anunciaram também vendas repentinas de ativos russos. Como comparação, a decisão da francesa Total de abandonar as suas operações em Mianmar, devido à violação dos direitos humanos, anunciada o mês passado, demorou cerca de 2 anos a tomar. A limitação de circulação de produtos e capitais russos levará à inflação dos preços e à distorção do valor de várias moedas nos mercados globais.
Há também o risco dos boicotes de 2022 proporcionarem uma leitura oportunista. Putin era Putin quando realizou uma "intervenção militar humanitária" na Geórgia em 2008, quando anexou a Crimeia e Sevastopol em 2014, quando interveio na Revolução Ucraniana de 2014, quando usou gás sarin na Síria em 2017, ou quando envenenou opositores políticos como Alexei Navalny, em 2020. A comunidade internacional sempre reagiu com alguma indiferença de atos, apesar da querela verbal. O Putin déspota de hoje não é diferente do Putin dos últimos 20 anos. Quantos chefes de estado ocidentais aceitaram ser recebidos com honras de Estado no Kremlin nesse período?
Há também espaço para inconsistências. Esta semana a Suíça quebrou a sua neutralidade histórica e bancos privados aceitaram congelar bilhões de dólares de fortunas de oligarcas russos. Mas continuam a aceitar gerir os ativos de ditadores asiáticos e latinoamericanos ou de senhores de guerra africanos, apesar das sanções internacionais.
A Shell decidiu vender os 28% que detém na instalação de gás natural liquefeito Sakhalin-II, na Rússia, mas explora o campo Dragón, localizado no norte da Venezuela, em parceria com a estatal PDVSA. A Equinor anunciou que irá sair de suas joint ventures na Rússia, mas tem uma licença de exploração de gás natural em Cocuina, também no norte do país latinoamericano. O dano que Putin inflige aos ucranianos é mais grave do que o estrago aplicado por Maduro aos venezuelanos?
Além das petroleiras ocidentais, vários investidores de porte como o USS, Storebrand, o fundo soberano da Noruega, KLP ou a Church of England, anunciaram desinvestimentos em ativos russos, tanto de dívida quanto de equity. Mas desinvestir significa vender. E quem vende tem que ter um comprador. Como demonstram dezenas de estudos em finanças sustentáveis, se o objetivo é promover a mudança positiva, é mais fácil fazê-lo como acionista do que simplesmente vendendo ativos a um comprador que potencialmente não tem inclinações para a preservação ambiental, o bem-estar social ou a boa governança corporativa (ESG).
Ademais, o bloqueio das reservas internacionais do Banco Central da Rússia (40% estão na Europa e nos EUA), sem uma resolução do Conselho de Segurança da ONU, é uma medida difícil de justificar à luz do direito internacional e abre um precedente preocupante que pode ser usado perniciosa e discricionariamente em contextos geopolíticos menos consensuais.
E quais critérios devem ser utilizados para pôr fim à utilização deste arsenal financeiro contra a Rússia? O que levará a comunidade política, diplomática, esportiva, econômica e financeira a terminar os boicotes e sanções? O fim da guerra? Em que termos? A queda de Putin? A melhoria dos índices democráticos na Rússia? Os critérios não existem ou são vagos, dando azo a possíveis contradições e arbítrios nos próximos meses.
Infelizmente, quando as armas se calarem, a comunidade internacional, também em silêncio, deverá começar a restabelecer os elos econômicos com a Rússia, sem que transformações estruturais sejam realizadas.
A guerra mundial financeira é justificada e justa (jus ad bellum), mas está a comunidade internacional verdadeiramente preparada para travá-la? A guerra convencional armada é condicionada por tratados internacionais, como as Convenções de Genebra e seus Protocolos Adicionais de 1949, que tentam impedir a barbárie. As novas guerras financeiras também precisarão de clareza institucional e congruência legal, para impedir a discricionariedade.
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