Ross Douthat

Colunista do New York Times, é autor de 'To Change the Church: Pope Francis and the Future of Catholicism' e ex-editor na revista The Atlantic

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Cristãos devem se tornar minoria nos EUA, e religião está cada vez mais americanizada

'Heresias' como a teologia da prosperidade, a religião da autoajuda e o nacionalismo cristão chauvinista se mantêm fortes

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The New York Times

Em setembro, o Centro de Pesquisas Pew elaborou modelos de quatro futuros potenciais para a religião nos Estados Unidos, a depender de diferentes taxas de conversão e desafiliação das fés do país.

Em três das quatro projeções, a porcentagem de cristãos na população americana, que girava em torno de 90% nas décadas de 1970 e 1980, ficou abaixo de 50% para o próximo meio século. Em dois cenários, a participação cristã cai abaixo de 50% muito antes, por volta de 2040, e depois continua caindo.

Esta é uma transição potencialmente histórica, mas que tipo de transição? Em direção a uma América verdadeiramente secular, com "Imagine" de John Lennon como seu hino nacional? Ou em direção a uma sociedade repleta de formas de espiritualidade novas ou remixadas, todas competindo pelas almas dos antigos católicos, dos ex-metodistas unidos, dos infelizes sem igreja?

Pastor batista durante serviço em igreja evangélica em Dallas, no estado americano do Texas
Pastor batista durante serviço em igreja evangélica em Dallas, no estado americano do Texas - Shelby Tauber - 26.jun.22/Reuters

Dez anos atrás, publiquei um livro intitulado "Bad Religion: How We Became a Nation of Heretics" (religião ruim, como nos tornamos um país de hereges), que oferecia uma interpretação da mudança do cenário religioso do país, o acentuado declínio da fé institucional depois dos anos 1960.

Antes que o aniversário do livro passe despercebido, pensei em revisitar o argumento, para ver como ele funciona como um guia para nossa sociedade hoje mais descristianizada.

O que o livro propunha era que "secularização" não era um rótulo útil para a transformação religiosa americana. Em vez disso, a cultura americana parece "tão obcecada por Deus hoje quanto sempre" –ainda fascinada pela figura de Jesus de Nazaré, ainda em busca do favor divino e da transcendência.

Mas é muito menos provável que esses interesses e obsessões sejam canalizados por meio de igrejas, protestantes e católicas, que mantêm alguma conexão com as ortodoxias cristãs históricas.

Em vez disso, o antigo impulso nacional em direção à heresia –a revisões personalizadas da doutrina cristã, atualizações americanizadas do evangelho– enfim completou sua vitória sobre instituições e tradições cristãs. O resultado é um cenário dominado por ideias cristãs populares que "enlouqueceram", como disse G.K. Chesterton, "pois foram isoladas umas das outras e estão vagando sozinhas".

Essa América tem uma igreja de amor-próprio, com profetas como Oprah Winfrey pregando um evangelho do eu divino, uma espiritualidade do "Deus Interior" que arrisca transformar o egoísmo em virtude.

Tem uma igreja da prosperidade, com figuras como Joel Osteen, que insiste que Deus não deseja nada mais a seus eleitos do que o sucesso capitalista. E tem igrejas pregando a redenção por meio do ativismo político –um nacionalismo cristão de direita, alternadamente messiânico e apocalíptico—, e um utopismo de esquerda, convencido de que o arco da história sempre se curva a seu favor.

Essas heresias, argumentei, são mais importantes para entender a verdadeira influência da religião na América do que qualquer coisa que saia da Igreja Católica Romana ou da Convenção Batista do Sul.

Você pode entender nossa situação espiritual mais completamente lendo "O Código Da Vinci", "Comer, Rezar, Amar" e "Sua Melhor Vida Agora" do que folheando uma encíclica papal (ou, nesse caso, uma polêmica ateísta). E você pode ver mais da influência duradoura, mas agora deformada, do cristianismo nos hinos à celebridade de will.i.am a Barack Obama em 2008, ou nos reavivamentos direitistas de Glenn Beck alguns anos depois, do que em qualquer autoridade cultural ainda ligada ao Novo Testamento ou ao Credo Niceno. Essa era minha tese em 2012. Dez anos depois, a estrutura se manteve?

De certa forma, obviamente sim. Considere o fenômeno peculiar de Donald Trump, um aparente pagão que de alguma forma conseguiu assumir a liderança do partido político mais religioso do país e depois ser tratado por alguns de seus membros mais zelosos como uma espécie de rei ungido.

A ascensão de Trump foi um testemunho da força das principais heresias –a teologia da prosperidade, a religião da autoajuda e um nacionalismo cristão chauvinista– dentro da direita religiosa.

Notavelmente, a principal conexão institucional de Trump com o cristianismo foi sua presença há muito tempo na igreja de Norman Vincent Peale em Manhattan, na época em que Peale era famoso como o guru da autorrealização espiritual, autor de "O Poder do Pensamento Positivo".

Como um empresário celebridade e vendedor agressivo, Trump acabou se tornando um defensor natural dos herdeiros mais direitistas de Peale, reunindo aliados do reino de pastores famosos e pregadores da prosperidade. Enquanto isso, como um tribuno da grandeza americana, ele acabou apelando para as partes mais nacionalistas do evangelismo –incluindo eleitores que eram mais propensos a se identificar com o cristianismo como um marcador cultural de "americanidade" do que a realmente frequentar a igreja.

Enquanto o trumpismo estava sendo aprovado por heresias de direita, o liberalismo na era Trump acabou infundido pela heresia em um grau que nem eu esperava. A ideia de despertar não aparecia em "Bad Religion", que surgiu antes da nova onda de ativismo no campus, antes de Vidas Negras Importam e #MeToo e da era da diversidade-equidade-inclusão. Mas o "Grande Despertar" é um exemplo perfeito de energias espirituais cristãs separadas da crença ortodoxa –uma versão do revivalismo protestante despojado da dogmática protestante, mas mantendo um zelo cruzadista, uma retórica de conversão, confissão e transformação moral, uma necessidade às vezes frenética de expulsar o mal e o impuro.

O progressismo da justiça social tem muitas influências, é claro. Mas deve ser entendido, em parte, como um descendente espiritual do puritanismo, ocupando o "locus" do poder puritano (as velhas cidadelas protestantes da Ivy League e do establishment do nordeste americano), adaptando o velho espírito do perfeccionismo moral a um novo conjunto de questões e demandas.

Assim, tanto para a direita quanto para a esquerda, a estrutura da nação dos hereges ainda parece útil. Mas então a questão, e o desafio para minha tese agora, é exatamente até onde o declínio do cristianismo pode ir antes que um termo como "heresia" deixe de ser analiticamente apropriado. Porque em algum ponto, presumivelmente, a influência do cristianismo torna-se meramente genealógica, e você tem que dar crédito aos experimentadores espirituais por alcançar um território religioso diferente.

Um núcleo da prática e da crença cristã neste país parece relativamente resiliente. Mas a ideia de uma "nação de hereges" partia do pressuposto de muitos americanos com laços frouxos com o cristianismo– frequentadores de igrejas no Natal e na Páscoa, pessoas criadas com pelo menos alguma ideia dos princípios da fé. E são os menos afiliados que mais se distanciaram nos últimos anos, atenuando ainda mais as conexões entre o cristianismo e seus possíveis rivais ou sucessores.

Quando eu estava escrevendo "Bad Religion", ainda havia interesse pelos vários projetos do "Jesus histórico", as reconstruções acadêmicas que prometiam entregar um Jesus mais adequado aos pressupostos espirituais dos Estados Unidos da era moderna. E parecia haver um forte incentivo cultural para recrutar alguma versão do Nazareno –como fez Dan Brown em "O Código Da Vinci", por exemplo– para seu projeto espiritual pessoal, para ganhar a bênção de Jesus por deixar a ortodoxia cristã para trás.

Hoje, porém, minha sensação é de que o próprio Jesus é menos central culturalmente, menos necessário para os empreendedores religiosos –como se aonde os americanos estivessem indo agora, em suas explorações pós-cristãs, eles não quisessem ou precisassem de sua bênção. Essa mudança de prioridades não nos diz exatamente para onde eles estão indo. Mas basta dizer agora que o rótulo "pós-cristão" se encaixa na tendência geral da espiritualidade americana mais do que uma década atrás.

Esse tipo de mudança mostra a imprevisibilidade do futuro religioso, tanto quanto sua inevitabilidade. O relatório Pew, notavelmente, trata um cenário hipotético de "status quo" –ninguém mudando de religião– como seu melhor caso para o futuro do cristianismo na América. Não há um cenário em que o crescimento cristão retorne, em que uma parcela maior da América seja cristã em 2050 do que hoje.

Eu não esperaria que um cientista social previsse esse tipo de reversão. Mas o Advento e o Natal não são sobre tendências que se prolongam, como antes; são sobre ruptura, renovação, renascimento. É disso que o cristianismo americano precisa agora –agora como sempre, agora como naqueles primeiros dias, quando todo o seu futuro estava contido no mistério e na vulnerabilidade de uma mãe e um filho.

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

Erramos: o texto foi alterado

A coluna de Ross Douthat foi publicada incorretamente como se fosse de Thomas L. Friedman. 
 

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