Thomas L. Friedman

Editorialista de política internacional do New York Times desde 1995, foi ganhador do prêmio Pulitzer em três oportunidades

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Thomas L. Friedman

Nunca devemos esquecer o mal que Trump e seguidores fizeram à democracia dos EUA

Voltei a ter esperança no sistema depois de midterms punirem o Grande Mentiroso e seus mentirosinhos

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The New York Times

Fiquei um pouco emocionado quando fui votar neste ano.

Primeiro fui ao colégio errado no meu bairro, onde um mesário fez uma busca cuidadosa por meu nome e então explicou que eu estava cadastrado na escola primária Bethesda, ali perto. Quando cheguei, voluntários —meus vizinhos, desde jovens entusiasmados de vinte e poucos anos até aposentados grisalhos— me explicaram pacientemente como marcar a cédula de papel. Quando meu celular tocou de repente, só faltou me estrangularem: "Desligue isso!".

Foi o que há de melhor nos EUA: essa gente, esse processo, tudo com retidão e respeito. Que privilégio poder votar assim! E que absurdo essa mesma gente e esse mesmo processo que Donald Trump passou os últimos dois anos aviltando e atacando, conseguindo arrastar a maioria de seu partido com ele nessa gigantesca acusação fraudulenta de que sua suposta vitória na eleição de 2020 lhe foi roubada.

Mas espere aí —onde estava Trump na semana passada?

O ex-presidente dos EUA Donald Trump no anúncio de sua pré-candidatura, em Mar-a-Lago - Jonathan Ernst - 15.nov.22/Reuters

Você por acaso ouviu Trump ou seus lacaios alegando que estas midterms foram fraudadas, que as supostas vitórias de seus candidatos escolhidos a dedo lhes foram roubadas? Tirando algumas afirmações totalmente infundadas lançadas aqui ou ali por Trump, incluindo a de que a fracassada candidata a governadora do Arizona, Kari Lake (uma imitadora farsesca de Trump) estava sendo vítima de uma trapaça, não houve muita coisa.

Em vez disso, Trump passou a maior parte sua energia defenestrando alguns de seus candidatos escolhidos a dedo e acusando sua esposa e outras pessoas de o terem persuadido a endossar o bando bizarro de bajuladores negacionistas eleitorais que viraram o "time Trump" e perderam praticamente todas as disputas mais importantes.

O fato de Trump não estar agora movendo ações judiciais em nome de todos eles para comprovar que houve fraude eleitoral diz tudo. Basicamente, Trump está dizendo a todos eles:

"Sinto muito, essa mentira sobre eleições fraudadas diz respeito apenas a mim. Só há lugar para um mártir neste partido. Vocês não podem usar minha mentira em suas eleições estaduais. Só endossei pessoas ambiciosas e sem princípios –como você, JD Vance, Mehmet Oz, Doug Mastriano e Adam Laxalt— para amplificar minha mentira e provar que não sou perdedor. Jamais posso ser visto como perdedor. Se vocês são perdedores, a culpa é de vocês mesmos."

Isso também explica por que a maioria dos negacionistas eleitorais que perderam, como Oz, simplesmente admitiram a derrota e não alegaram fraude. Por que não criar confusão, Mehmet? Ei, JD, por que você não bradou que seus colegas republicanos perderam porque as eleições deles foram manipuladas, como você fez com Trump? E você, Doug? O que foi mesmo que você disse no domingo quando reconheceu ter perdido a eleição para governador da Pensilvânia? "Por difícil que seja aceitar o resultado da eleição, não há outra opção correta senão reconhecer minha derrota, e eu a reconheço."

Como assim? Essa é a opção correta hoje, mas não foi a opção correta para Trump dois anos atrás?

Porque nenhum de vocês jamais acreditou na mentira de Trump, para começo de conversa, vocês não ousaram usar a mesma mentira nas próprias eleições!

Vocês apenas pegaram carona na mentira de Trump, acreditando que ela seria seu bilhete mágico, seu atalho fácil para a vitória. Pensaram que poderiam ecoá-la, serem eleitos com os votos de partidários dele e então deixá-la para trás. Agora que a maioria não conseguiu se eleger, querem que esqueçamos que tentaram vergonhosamente explorar essa mentira para chegar ao poder, enquanto saem de fininho.

Não. Mil vezes, não.

Nunca, jamais devemos esquecer o mal que, por perpetrarem essa Grande Mentira, Trump e seus imitadores cínicos, seguidores sectários e amplificadores na mídia fizeram à reputação de nossa democracia, ao respeito por suas instituições e à unidade da sociedade.

Vista isoladamente, já foi uma farsa vergonhosa —mas o fato de ter sido cometida no meio de uma pandemia tremendamente difícil, num momento em que precisávamos mais que nunca confiar uns nos outros, cuidar uns dos outros e cooperar com nosso governo para frear a Covid, foi criminoso.

Acho que não temos uma visão completa do mal que isso fez à tessitura social e ao sistema político. A Grande Mentira dividiu famílias no Dia de Ação de Graças. Desfez amizades. Dividiu bairros, Câmaras, Assembleias estaduais, associações de pais e mestres, diretorias de empresas e Redações de jornais. E desviou a atenção de todo o país do trabalho de construção nacional em casa, tornando praticamente impossível realizarmos alguma coisa importante e difícil juntos.

Ela não apenas maculou a reputação do país como democracia como motivou uma turba a invadir o Capitólio —com a finalidade expressa de derrubar o resultado da eleição. Cinco policiais morreram. Muitos dos insurretos deixaram claro que foram motivados pela Grande Mentira. O extremista que atacou Paul Pelosi, marido da presidente da Câmara, Nancy Pelosi, ficara de molho em teorias conspiratórias.

A Grande Mentira também empoderou autocratas, incluindo o russo Vladimir Putin e o líder chinês Xi Jinping, e falsos democratas como o húngaro Viktor Orbán, a andar por aí gabando-se de que seus próprios povos nunca teriam que se preocupar com o "caos" acarretado pela democracia e as eleições.

O Grande Mentiroso Trump e todos os mentirosinhos que pegaram carona em sua fraude, para o próprio lucro e diversão —especialmente Rupert e Lachlan Murdoch, Tucker Carlson, Sean Hannity e praticamente toda a equipe da Fox— causaram dano incalculável. Deveriam todos envergonhar-se profundamente.

E Trump agora tem a cara de pau, o descaramento absoluto, de postar-se diante dessa fogueira de mentiras, ódio e relacionamentos rompidos que ele acendeu e declarar que está se candidatando à Presidência outra vez?

E agora a turma de Murdoch, depois de passar dois anos dando corda a essa fraude, tem a ousadia de dizer "quem sabe seja hora de apostarmos em Ron DeSantis" —sem qualquer responsabilização por aquilo que ela permitiu acontecer? Não, sinto muito. A história não será leniente com vocês.

Como disse David Axelrod, ex-assessor do presidente Barack Obama, à CNN, falando do abandono de Trump por alguns políticos republicanos agora que ele virou perdedor: assistir ao "êxodo deles do campo de Trump, encabeçados por Rupert Murdoch e seu império de mídia de direita, tem sido espantoso. Eles podem tolerar transgressões contra a democracia e a decência, mas não toleram perder".

É por isso que, pela primeira vez em muito tempo, voltei a sentir alguma esperança no sistema político americano. Desde que Trump desceu aquela escada rolante em 2015, o establishment republicano vem tentando fazer duas coisas mutuamente incompatíveis: colher os votos da base de Trump e desviar os olhos dos comportamentos vergonhosos dele, até mesmo de seu aviltamento do sistema eleitoral. Para eles, nada que Trump fizesse era suficientemente vil para que o repudiassem, porque estavam viciados nos votos da base dele.

Bem, a maioria dos americanos acaba de estabelecer um piso, um limite. Ou, como escreveu Nick Corasaniti: "Cada negacionista eleitoral que tentou chegar a um alto cargo eleito num estado indeciso crítico perdeu nas urnas. Os eleitores rejeitaram redondamente os extremistas que prometeram restringir o voto e reformular o processo eleitoral".

É verdade que a maioria dos seguidores sectários de Trump ainda abraça a mentira dele, porque abandonar essa posição abertamente diante de familiares, amigos ou colegas é embaraçoso demais. Mas o establishment republicano terá que escolher: continuar a perder com Trump ou eliminá-lo da ilha pelo voto, em favor de DeSantis. Bem-vindos a "Survivor: Flórida".

A melhor parte é que esse acerto de contas não foi imposto pela liderança do Partido Republicano —eles são covardes—, mas pelas pessoas mais importantes e discretamente corajosas nesta eleição: americanos comuns; republicanos, democratas e independentes que agem movidos por princípios, jovens e velhos que votaram contra a Grande Mentira e seus perpetradores em suas seções, exatamente como a minha, e seus vizinhos e concidadãos movidos por princípios que contaram os votos cuidadosa, justa e honestamente, exatamente como sempre fizeram —inclusive em 2020.

Tradução de Clara Allain

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