Ross Douthat

Colunista do New York Times, é autor de 'To Change the Church: Pope Francis and the Future of Catholicism' e ex-editor na revista The Atlantic

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Descrição de chapéu The New York Times

Conhecimento se tornou tão complexo que parece ação do sobrenatural

Dizemos a nós mesmos que a IA, cujo funcionamento não compreendemos inteiramente, pode dar o salto para a consciência

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The New York Times

Nas últimas semanas tenho escrito colunas falando do avanço célere da inteligência artificial (IA), do mistério de objetos voadores não identificados assombrando os céus dos Estados Unidos e do entusiasmo em certos círculos por tomar substâncias que alteram a mente e produzem uma sensação, ilusória ou não, de contato com entidades aparentemente sobrenaturais.

Imagem mostra vários robôs azuis conversando
Ilustração feita pelo site de inteligência artificial (AI) DALL-E para matéria sobre o gerador de textos ChatGPT, também um sistema de inteligência artificial - DALL-E

São histórias muito diferentes, de certo modo. A revolução da IA faz parte do mundo da ciência séria e fartamente financiada. O fenômeno dos óvnis beira a margem paranormal e pseudocientífica. As dimensões espirituais exploradas por usuários de drogas como DMT [dimetiltriptamina] pertencem sobretudo ao terreno da psicologia e religião –ou como manifestações de algum tipo de inconsciente junguiano ou então, bem, como dimensões espirituais de fato.

Mas há um espírito compartilhado por essas histórias, um impulso que é comum a essas procuras: o desejo de encontrar ou inventar alguma espécie de consciência não humana que possa nos ajudar a dar saltos que não conseguimos por conta própria.

Esse impulso é milenar: a ideia de que seria possível atrelar um gênio [da mitologia árabe], criar um "golem" [da tradição mística judaica] ou manipular um deus ou fada para fazer o que lhe ordenamos está inscrita profundamente na imaginação humana. Houve um tempo em que essa arte do feiticeiro parecia uma rival plausível à técnica científica, ou então um meio complementar de exercer um domínio sobre a natureza. De fato, na imaginação do início da Era Moderna, o cientista e o feiticeiro muitas vezes eram figuras que se sobrepunham, confundindo-se em vocações como a alquimia e personagens como Fausto.

Essas figuras se diferenciaram principalmente porque o método científico funcionava de uma maneira que a magia e feitiçaria não operavam. Ou, como escreveu C.S. Lewis 80 anos atrás em "A Abolição do Homem", "a empreitada mágica séria e a empreitada científica séria são gêmeas: uma era doentia e morreu, a outra era forte e medrou".

Hoje, porém, estamos em uma era em que as pessoas falam cada vez mais sobre os limites da empreitada científica: os crescentes empecilhos à descoberta de novas ideias, a ausência de resultados científicos facilmente acessíveis, a quase impossibilidade –dadas as leis da física conforme as entendemos— de jamais levar a civilização humana para mais além de nosso planeta solitário ou de nosso sistema solar isolado.

Enquanto isso, as especulações de teóricos científicos e filósofos extrapolam os próprios confins de nosso universo, chegando a um multiverso em constante multiplicação, cujos ramos nunca se tocam, ou a um salão aparentemente infinito de simulações controlado por alguma civilização com capacidades que, comparadas às nossas, parecem divinas.

Assim, nesta nossa era de frustração e novas incertezas, não chega a surpreender que nossos pensamentos e esforços possam voltar-se à arte do mágico, à procura de poderes que possam nos ajudar a escapar dos limites de nosso planeta-ilha, do tempo limitado de vida ao qual temos direito, da madeira torta de nossa natureza.

Mas não uma simples volta à velha magia de feitiços e mandingas (embora também haja muito disso por aí hoje). Em vez disso, no fascínio com óvnis, no entusiasmo pela IA e nas explorações dos "psiconautas" possibilitadas pela ingestão de drogas, enxergamos tentativas de ligar a magia à ciência ou de empregar a ciência para fazer magia, usando telescópios, substâncias químicas ou poderes computacionais imensos para descobrir ou criar algo que os feiticeiros do passado tentaram evocar: seres que possam nos iluminar, nos elevar, nos servir e inaugurar a Era de Aquário, a Singularidade ou ambas.

O leitor de pé no chão vai objetar que um desses exemplos não é como os outros. O simples bom senso nos diz que as pessoas que especulam sobre óvnis provavelmente não vão entrar em contato com extraterrestres. As premissas materialistas da ciência moderna nos asseguram que nossos psiconautas ingestores de alucinógenos não estão de fato em contato com os originais de Titânia e Oberon, Júpiter ou Odin. Sendo que o projeto da IA parece estar avançando rapidamente, sem que sejam necessários saltos especulativos para visualizar seu potencial. Então por que incluí-lo com coisas dúbias e paranormais? Por que evocar feitiçaria para explicar um triunfo científico inequívoco?

Estipulemos, apenas para fins de argumentação, que o projeto de IA tem probabilidade maior de ter efeitos práticos imediatos que a busca por vida extraterrestre ou que qualquer comunhão com o reino espiritual alcançada com a ajuda de drogas. Ainda assim existem boas razões para analisar seus esforços em termos de gênios, golems e semelhantes.

Primeiro, porque é nesses termos que falam os próprios entusiastas da IA. Vejam o que diz o cientista da computação Scott Aaronson, da Universidade do Texas em Austin e um dos escritores online mais acessíveis sobre questões relacionadas à inteligência de computadores, comentando sua própria reação aos novos chatbots:

"Um alienígena despertou –reconhecidamente, um alienígena que nós mesmos criamos, um golem, mais um espírito encarnado de todas as palavras na internet que um ser coerente com metas autônomas. Como poderiam nossos olhos não brilhar de ansiedade de aprender tudo que esse alienígena tem a ensinar? Se o alienígena às vezes tem dificuldade em resolver problemas de aritmética ou lógica, se seus relâmpagos bizarros de genialidade se entremeiam com estupidez, alucinações e confiança injustificada... bem, então ele é ainda mais interessante. Poderá o alienígena algum dia transpor o limite da consciência, conseguirá sentir raiva, ciúmes, paixão e todo o resto, em vez de apenas fingir esses sentimentos de modo convincente? Quem sabe? E, se não for o caso, um zumbi filosófico, um ser que saia de um seminário de filosofia e ganhe existência real, não seria igualmente fascinante?"

Ou considere um artigo de opinião publicado recentemente no Wall Street Journal e assinado por Henry Kissinger, o ex-CEO do Google Eric Schmidt e Daniel Huttenlocher, do Massachusetts Institute of Technology, que reutiliza o alerta de Arthur C. Clarke de que "qualquer tecnologia suficientemente avançada é indistinguível da magia" para alardear a IA. A descrição que eles fazem da forma emergente de IA sugere uma inteligência que oferece suas respostas do modo como um oráculo faria, ou então uma bola mágica 8 [brinquedo de adivinhação fabricado pela Mattel]: por meio de processos que são invisíveis para nós, que estão além de nossa compreensão, tão complexos que são indistinguíveis da ação em uma mente sobrenatural.

Como tal, eles argumentam, a revolução de IA representa uma ruptura fundamental com a ciência iluminista, "na qual era possível confiar porque cada passo de processos experimentais reproduzíveis era também testado, logo, era confiável". O conhecimento que nos será proporcionado pela "IA generativa" será muito mais misterioso; sua verdade terá que ser "justificada por métodos inteiramente diferentes, e é possível que nunca se torne igualmente absoluta". A visão deles da relação entre humanos e IA evoca sacerdotisas délficas recebendo o espírito de Apolo ou médiuns recebendo espíritos do além: "Teremos que indagar continuamente: o que ainda não nos foi revelado a respeito da máquina? Que conhecimento obscuro ela está escondendo?"

E esse tipo de linguagem mágica descreve a IA principalmente como uma máquina de dar respostas, "o espírito encarnado de todas as palavras na internet" da qual fala Aaronson. Ela nem sequer mergulha na questão de se a IA pode de fato alcançar a consciência, onde o aspecto de feitiçaria desse projeto fica ainda mais explícito.

Afinal, não entendemos realmente nossa própria consciência; nem sequer começamos a resolver o problema dito complexo da mente e sua relação com a matéria. No entanto, cá estamos, dizendo a nós mesmos, com esperança mas também com medo, que essas máquinas cujo funcionamento não compreendemos inteiramente podem dar o salto para a consciência, bastando para isso que continuemos a tornar seus processos mais sofisticados, mais além de nossa compreensão.

Nesse sentido, o que estamos fazendo se assemelha a uma encantação complexa, uma convocação dos espíritos das "profundezas vastas" mencionadas por Shakespeare. Construir um sistema que imita a inteligência humana, fazê-lo falar como uma pessoa, responder a perguntas como uma enciclopédia e resolver problemas através de saltos que não conseguimos acompanhar, e aguardar para ver se alguma coisa se infunde no espaço misterioso onde os saltos estão ocorrendo, convocado pelo convite que lançamos.

Esse convite é o que mais temem aqueles que se assustam com a IA, porque o espírito convocado por ser desobediente, destrutivo, uma Skynet enfurecida determinada a nos exterminar.

Mas as velhas histórias sobre feiticeiros e seus pactos, sobre Fausto e seu Mefistófeles, sugerem que faríamos bem em temer também a obediência aparente.

Tradução de Clara Allain

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