Ross Douthat

Colunista do New York Times, é autor de 'To Change the Church: Pope Francis and the Future of Catholicism' e ex-editor na revista The Atlantic

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Avanço da legalização da maconha nos Estados Unidos é um erro

Liberação não é golpe contra encarceramento em massa nem faz grandes coisas pela saúde pública

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The New York Times

De todas as maneiras de se vencer uma guerra cultural, a mais fácil é fazer o outro lado parecer irremediavelmente careta. Assim tem sido na marcha pela legalização da maconha: houve argumentos morais sobre os excessos da guerra às drogas e argumentos médicos sobre os benefícios potenciais da maconha, mas a vibração de todo o debate colocou a emoção contra o tenso, o legal contra o careta, o futuro tranquilo contra os diretores Skinners do passado.

À medida que o apoio à legalização aumentou, alcançando uma maioria de dois terços nas pesquisas recentes, qualquer argumento contrário tornou-se um pouco inútil, e até mesmo críticas modestas são expressas num estilo apologético e defensivo. Claro que não questiono o direito de ficar chapado, mas talvez o cheiro penetrante de maconha em nossas cidades seja um pouco triste? Não sou um policial antitráfico nem nada, mas talvez a cidade de Nova York não precise de tantos traficantes de maconha?

Plantas de maconha em estufa na cidade de Milton, nos EUA
Plantas de maconha em estufa na cidade de Milton, nos EUA - Shannon Stapleton - 15.jul.22/Reuters

Tudo isso significa que levará muito tempo para que o senso comum reconheça a verdade que parece prontamente clara para quadrados como eu: a legalização da maconha como fizemos até agora tem sido um fracasso de políticas, um potencial desastre social, um claro e evidente erro.

A melhor versão da tese do careta é um ensaio de Charles Fain Lehman, do Instituto Manhattan, explicando sua própria evolução de jovem libertário a adulto proibicionista. Não convencerá os leitores que chegam com pressupostos rigorosamente libertários –que acreditam no princípio elevado de que os adultos consensuais devem poder comprar, vender e desfrutar de quase qualquer substância exceto fentanil, e que nenhuma consequência social de segunda ordem pode justificar a violação desse direito.

Mas Lehman explica em detalhe por que os efeitos de segunda ordem da legalização da maconha justificaram principalmente os pessimistas e céticos. Primeiro, na frente da justiça criminal, a expectativa de que a legalização da maconha ajudaria a reduzir a população carcerária dos Estados Unidos ao liberar os infratores não violentos sempre foi exagerada, já que as condenações por maconha representaram uma pequena parcela da taxa de encarceramento mesmo em seu auge.

Mas Lehman argumenta que também não há boas evidências até o momento de que a legalização reduza os padrões racialmente discriminatórios de policiamento e prisões. Na opinião dele, os policiais costumam usar a maconha como pretexto para revistar alguém que suspeitam de um crime mais grave, e simplesmente substituem por algum outro pretexto quando a lei muda, deixando as taxas de detenção basicamente inalteradas.

Portanto, a legalização não é necessariamente um grande golpe contra o encarceramento em massa ou a favor da justiça racial. Nem está fazendo grandes coisas pela saúde pública. Havia esperança, e algumas evidências iniciais, de que a maconha legal poderia substituir o uso de opioides, mas alguns dados mais recentes apontam para o outro lado: um novo artigo publicado no Journal of Health Economics conclui que "a maconha medicinal legal, particularmente quando disponível através de dispensários de varejo, está associada a uma maior mortalidade por opioides".

Existem benefícios terapêuticos para a cannabis que justificam sua disponibilidade sob prescrição, mas as evidências de seus riscos continuam aumentando: este mês trouxe um novo trabalho reforçando a ligação entre o uso pesado de maconha e o início da esquizofrenia em homens jovens.

E os amplos riscos negativos da maconha, além dos perigos extremos como a esquizofrenia, continuam mais evidentes que nunca: uma forma de degradação pessoal, de perda de atenção, desempenho e motivação, que não é mortalmente perigosa como a heroína, mas que pode danificar ou descarrilar uma enorme quantidade de vidas humanas.

A maioria dos fumantes casuais de maconha não terá essa experiência, mas a era da legalização viu um aumento dramático no número de usuários não casuais. O uso ocasional aumentou desde 2008, mas o uso diário ou quase diário aumentou muito mais, com cerca de 16 milhões de americanos, de mais de 50 milhões de usuários, agora sofrendo do que é chamado de "distúrbio do uso de maconha".

Na teoria, existem respostas tecnocráticas para essas tendências infelizes. Em sua forma ideal, a legalização seria acompanhada por regulamentação e tributação efetivas e, como observa Lehman, no papel deveria ser possível desencorajar o vício aumentando os impostos no mercado legal, levando efetivamente os usuários a um consumo mais casual.

Na prática não tem funcionado assim. Por causa de todos os anos de proibição, já existe um mercado ilegal maduro e flexível, pronto para reduzir quaisquer preços cobrados pelo mercado legal. Portanto, para tornar o mercado legal bem-sucedido e passível de regulamentação, provavelmente se precisaria de muito mais fiscalização contra o mercado ilegal –o que é difícil e caro e, mais uma vez, obviamente não é simpático, conflitando com o espírito de boas vibrações dos legalizadores.

Então você tem o caso extremo de Nova York, onde a permissão legal ficou para trás enquanto um número incontável de lojas ilegais estão fazendo negócios sem ser molestadas pela polícia. Mas mesmo em estados e localidades aparentemente menos incompetentes persiste um padrão semelhante.

Lehman cita o livro "Can Legal Weed Win? The Blunt Realities of Cannabis Economics" [A erva legal pode vencer? As realidades contundentes da economia da cannabis], de Robin Goldstein e Daniel Sumner, que mostra que o custo da erva não licenciada pode ser até 50% menor que o da variedade licenciada.

Portanto, quanto mais se tributar e regulamentar as vendas legais de maconha, mais se correrá o risco de fazer que os usuários simplesmente mudem para o mercado paralelo –e se quisermos que o mercado licenciado elimine o paralelo provavelmente precisaremos legalizar a maconha pelo menor preço possível, o que, por sua vez, prejudicará qualquer esforço para desencorajar o abuso crônico que afeta a vida.

Assim, os formuladores de políticas que não desejam tanto uso crônico e degradação pessoal têm duas opções. Eles podem projetar um sistema muito mais eficaz (mas necessariamente caro, complexo e às vezes punitivo) de regulamentação e aplicação do que existe até agora. Ou eles podem recorrer ao instrumento contundente de recriminalização, que Lehman prefere por sua simplicidade –com a possibilidade de que a posse permaneça legal e que apenas a produção e a distribuição sejam proibidas.

Espero que a legalização avance muito antes que qualquer uma dessas alternativas acumule apoio significativo. Mas um dia a cultura reconhecerá que, sob a bandeira da opção pessoal, estamos realizando um experimento geral de exploração –viciando nossos vizinhos mais vulneráveis em uma miríade de vícios aparentemente agradáveis, entregando nossos filhos à máquina de dopamina da rede social e espalhando a degradação onde quer que surjam cassinos e floresçam as lojas de maconha.

Com essa percepção, e somente com essa percepção, os caretas terão a atenção que merecem.

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves 

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