Sylvia Colombo

Historiadora e jornalista especializada em América Latina, foi correspondente da Folha em Londres e em Buenos Aires, onde vive.

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Descrição de chapéu América Latina

Crise no Equador não se explica com clichê de que 'América Latina não tem jeito'

É preciso revisitar história do país para entender dissolução do Congresso pelo presidente, Guillermo Lasso

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O romance "Huasipungo", escrito em 1934 pelo autor equatoriano Jorge Icaza, conta a história de um indígena que troca seu trabalho pelo direito de viver nas terras de um homem branco. Ao longo da trama, ele lidera um movimento de resistência aos abusos do patrão, mas acaba perdendo o que para ele tem maior valor.

Quando ocorrem crises como a que assistimos no Equador na semana passada, em que o atual presidente, Guillermo Lasso, invocou o recurso da "morte cruzada" —que estabelece que ele e o Congresso, unicameral, terão de deixar seus postos e novas eleições definirão o destino do país—, é necessário se voltar à história e à literatura para entender as particularidades dessa cultura. A outra via é recorrer aos clichês de que "a América Latina não tem jeito", "é uma convulsão atrás da outra", ou "a democracia não vale nada aqui".

O presidente do Equador, Guillermo Lasso, presta depoimento à Assembleia Nacional, em Quito - Karen Toro - 16.mai.23/Reuters

A atual situação na nação sul-americana só pode ser compreendida se entendermos sua história. Temos de dizer que o Equador era um território supervalorizado pelo Império Espanhol —muito mais que a Argentina até então. Enquanto esta era terra de piratas e de contrabando, Quito estava na rota do Peru, fonte de ouro e abundância.

Porém, o Equador jamais teve chance de se estabilizar do ponto de vista político. Desgastou-se em várias ocasiões após deixar de ser uma colônia espanhola, nitidamente dividida entre brancos, indígenas e negros que chegaram ao país em razão da escravidão.

Nos anos 1940, o país começou a viver tensões com o Peru que só teriam conclusão em décadas depois. Ele também sofreu as consequências de ser comandado, tempos depois, por um caudilho histórico da América Latina, Velasco Ibarra, presidente do país em cinco oportunidades. Sua morte, em 1979, produziu um vácuo de poder que governos militares e autoridades democraticamente tentaram ocupar em seguida.

O desgaste político e o impacto econômico desses anos impediram o desenvolvimento econômico e social do país. Na época em que o petróleo fazia as riquezas da Venezuela, no Equador —que tem reservas menores, mas não desprezíveis—, a instabilidade política e a desigualdade social limitavam sua exploração.

Dos anos 1990 em diante, o normal era ver um presidente assumir após o outro, numa média de um líder diferente a cada quatro anos. Eles saíam ou porque sofriam impeachment, ou ao renunciarem sob a pressão da sociedade ou da Assembleia, ou em razão de golpes militares. Foi assim com Abdalá Bucaram Ortíz (1996-1997), Fabián Alarcón Rivera (1997-1998), Jamil Mahuad Witt (1998-2000), Gustavo Noboa Bejerano (2000-2003) e Lucio Gutiérrez (2003-2005).

Até que Rafael Correa fosse eleito, em 2006, o Equador era, desse modo, uma espécie de liquidificador de mandatários. De tendência autoritária, o líder esquerdista que ficou no poder até 2017 mantém altos índices de popularidade, mesmo condenado por corrupção e autoexilado na Bélgica. Responsável pela inserção social de milhões de equatorianos pobres na classe média, Correa acusou Lasso de ter cometido um ato ilegal ao convocar a "morte cruzada", mas pediu que as novas eleições corram em paz e tranquilidade.

É triste que caudilhos que já estiveram no governo ainda deem as cartas num país democrático. Lasso, porém, com sua soberba e falta de vontade de se conectar com as demandas populares, não teve a empatia de reconhecer as feridas abertas de seu próprio país. E hoje paga o preço disso.

A melhor saída possível para a região é que o rito da "morte cruzada" seja cumprido, que todos se sintam representados e estimulados a votar, e que o processo tenha sua lisura garantida. Qualquer cenário diferente disso pode detonar tensões ou mesmo uma insurreição descontrolada, o que levaria a uma situação ainda mais difícil. Ninguém quer isso.

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