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Tensão política no Equador leva presidente a acenar com 'morte cruzada'

Medida constitucional nunca usada levaria a novas eleições gerais; Lasso decretou estado de exceção

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Buenos Aires

A decretação, na noite desta segunda-feira (18), de estado de exceção por 60 dias no Equador consolidou uma ofensiva do presidente Guillermo Lasso contra o que ele vinha chamando de conspiração para derrubá-lo do poder.

O principal reflexo da medida —tomada, segundo o mandatário, em resposta ao aumento dos índices de violência no país e à ação do narcotráfico— será o Exército nas ruas com mandado para atuar na segurança pública.

Mas ela não deixa de ser uma tentativa de Lasso de demonstrar força em um momento de turbulência política para o chefe do Executivo, que enfrenta ainda desencontros com o Parlamento. Nos últimos dias, o mandatário fez duras críticas ao Conselho de Administração da Legislatura, comissão que serve de porta de entrada para projetos de lei na Assembleia Nacional (o Congresso unicameral do país).

Soldado do Exército revista motoqueiro em Guayaquil no primeiro dia de estado de exceção imposto pelo presidente Guillermo Lasso no Equador - Maria Fernanda Landin - 19.out.21/Reuters

O órgão tem se negado a tratar de um pacote de textos apresentados pelo presidente, com reformas que atingem as áreas trabalhista e tributária, além de mudanças nas leis de herança e de comunicações.

Sob a pressão de uma crise carcerária e de sua recente aparição no caso dos Pandora Papers —a acusação de que teria desviado, talvez ilegalmente, sua fortuna a contas em paraísos fiscais rendeu um pedido de abertura de investigação pelo Congresso—, Lasso partiu para o ataque em entrevista na última sexta-feira (15), no Palácio de Carondelet.

"Se voltarem a bloquear as leis, devemos ir para a ‘morte cruzada’. O decreto já está pronto", afirmou, em referência a um mecanismo, presente no artigo 148 da Constituição, que permite que o presidente da República dissolva a Assembleia Nacional.

Pelo texto, em sete dias a partir da publicação do decreto o Conselho Nacional Eleitoral deve convocar eleições para todos os cargos do Legislativo e para a Presidência. Até lá, Lasso governaria por decreto —a "morte cruzada" também pode ser iniciada pelos parlamentares. Os novos eleitos assumiriam apenas para terminar o mandato já iniciado, e todos que já ocupam cargos hoje poderiam se candidatar novamente.

A Constituição permite que o mecanismo seja acionado apenas uma vez durante o mandato, sempre nos primeiros três anos de governo. A Assembleia só pode evitá-la se conseguir negociar com Lasso antes ou se votar a destituição do presidente (para a qual são necessários mais de dois terços dos votos).

A "morte cruzada" foi integrada à Constituição em 2008, com a ideia de facilitar a resolução de diferenças políticas entre Executivo e Legislativo —e até hoje nunca foi usada. "É um recurso que serve como válvula de escape para quando as coisas estiverem muito graves. Hoje é mais difícil destituir apenas o presidente ou apenas o Congresso", diz o constitucionalista Andrés Benevides.

Antes da eleição de Rafael Correa, em 2007, o Equador viveu anos de forte instabilidade política devido a um constante embate entre o Parlamento e os mandatários. Em 1997, Abdalá Bucaram foi destituído e, na sequência, também se viram impedidos pelo Congresso de seguir no cargo Jamil Mahuad (1998) e Lucio Gutiérrez (2003).

Lasso atribui as articulações na Assembleia contra ele a um "triunvirato de gângsteres". A saber, o ex-presidente Correa, seu principal rival; o influente político da democracia cristã Jaime Nebot, que chegou a apoiar o atual mandatário; e o líder indígena Leonidas Iza, protagonista das revoltas de 2019 (no governo de Lenín Moreno).

"Golpes de Estado já não se dão por meio de tanques e das ruas, mas por meio das Assembleias", disse. O presidente ainda afirmou que estava preparado para apresentar evidências de que as recentes rebeliões em presídios —uma delas, no mês passado em Guayaquil, terminou com 118 mortos— e os reveses no Legislativo faziam parte "de uma concertação conspirativa" liderada por esses três personagens.

"Em vez de abrir portas para uma negociação, para o exercício da política, Lasso preferiu fechá-las, ao insultar líderes de importantes forças políticas. Em algum momento voltar atrás para conversar poderá ser muito tarde", afirma o analista político Simón Pachano.

Correa respondeu no Twitter às acusações do chefe do Executivo. "Em vez de explicar os Pandora Papers, só o que Lasso faz é me difamar", escreveu. "Com essa postura ridícula, mostra seu desespero e falta de moral." Nebot também retrucou: "De que tipo de paranoia o senhor sofre? Não quero o fracasso de seu governo porque seria o fracasso de todos os equatorianos. Recupere sua inteligência emocional".

Em contraste ao momento turbulento, o presidente recebeu, nesta terça (19), elogios do secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, que está em viagem que incluirá também uma parada na Colômbia.

"Apoiamos o apelo por democracia que você compartilhou com o povo equatoriano e com todo o nosso hemisfério", disse o chefe da diplomacia americana, que também falou sobre o estado de exceção. "Às vezes medidas excepcionais são necessárias para lidar com situações urgentes."

A crise mais aguda se choca com um desempenho relativamente positivo do presidente, um ex-banqueiro de direita, em seus primeiros 100 dias de gestão. No período, Lasso conseguiu cumprir a promessa de vacinar contra a Covid, com as duas doses, 9 milhões de equatorianos (a população é de 17,6 milhões).

O secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, e o presidente do Equador, Guillermo Lasso, chegam a entrevista coletiva no palácio presidencial em Quito - Santiago Arcos - 19.out.21/Pool/AFP

Usando sua habilidade para negociação e seus contatos como empresário no exterior, comprou diferentes fármacos e já alcançou, segundo a plataforma Our World in Data, o nível de imunização de países como os EUA. Hoje, mais de 56% da população está vacinada com duas doses, deixando distantes na memória as imagens terríveis da chegada da pandemia a Guayaquil, com o colapso de hospitais e necrotérios.

A gestão da crise sanitária ajudou a levá-lo a um pico de aprovação popular de 73% entre os equatorianos, de acordo com o instituto Cedatos. A cifra é mais relevante quando se considera que Lasso havia ficado em segundo lugar no primeiro turno da eleição, atrás de Andrés Arauz, apadrinhado político de Correa -no segundo turno, unindo forças com indígenas e descontentes com o correísmo, ele bateu o rival com 52,3% dos votos.

No levantamento mais recente, o mandatário tem 63,5% de popularidade, e Correa —que não pode se candidatar, porque está condenado por corrupção, mas se mantém líder da força política majoritária no Congresso— tem 34%.

Exilado na Bélgica, o ex-presidente vem trabalhando na reconstrução de seu espaço. Abandonou a sigla Alianza País, que rachou na gestão de seu ex-apadrinhado político Lenín Moreno, e criou a Revolução Cidadã, cercado de seus mais fiéis seguidores.

Lasso, por sua vez, age como se estivesse em campanha para demonstrar força e convocou, para os próximos dias, uma manifestação em Quito de apoio à sua gestão, sob o lema: "Não ao triunvirato da conspiração".

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