Lembro com carinho dos domingos passados na Livraria Cultura do Conjunto Nacional, às margens da avenida Paulista, em São Paulo. Escrevo "às margens" não por preciosismo linguístico: a partir da perspectiva de um menino da região metropolitana numa cidade desigual, a Paulista, mesmo com sua frieza em forma de arranha-céus, desanuviava como um mar de possibilidades de cultura. O Mapa da Desigualdade aponta disparidade de até 36 vezes na quantidade de equipamentos públicos de cultura conforme os distritos da metrópole.
Eu costumava pegar o trem da CPTM de Osasco até a capital nos finais de semana para andar pelos corredores da Cultura. Foi ali que aprendi inglês, vasculhando os livros estrangeiros; ali que aprendi a gostar de ler ou, mais precisamente, como livros curam a solidão abrindo janelas além do possível. No clássico "Morte e Vida de Grandes Cidades", a ativista urbana Jane Jacobs já alertava sobre a necessidade de que houvesse espaços plurais —sem os quais as cidades morrem.
Hoje, com falência declarada, o que resta como "post mortem" diante do iminente fim da livraria é o alerta de que não bastam espaços de convivência pública, mas privados; não bastam mecanismos de mercado para manter a cidade longe de se tornar um grande estacionamento entre shoppings. Além do debate sobre estratégias erradas do mercado de livrarias físicas enquanto feiras de livros e vendas online crescem, a falência da Livraria Cultura levanta sobretudo um debate sobre cidade.
Deve-se ler a falência para além da questão do fechamento de um espaço de cultura no centro rico da capital, onde há abundância de espaços de cultura: deve-se lê-la igualmente como o sintoma da falência de uma tentativa de cidade plural.
O protesto e choro dos funcionários é menos um grito sobre sua própria condição trabalhista (também o é), mas um debate sobre em que medida se quer construir uma cidade onde haja convivência pública entre diferentes.
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