Thomas L. Friedman

Editorialista de política internacional do New York Times desde 1995, foi ganhador do prêmio Pulitzer em três oportunidades

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Putin tenta converter Rússia em gigantesca Coreia do Norte

País será Estado paranoico e isolado e terá milhares de ogivas nucleares

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The New York Times

Com sua anexação de partes da Ucrânia, na sexta-feira (30), Vladimir Putin desencadeou forças que estão convertendo a Rússia numa gigantesca Coreia do Norte. A Rússia será um Estado paranoico, enfurecido e isolado. Mas, diferentemente da Coreia do Norte, a versão russa abrangerá 11 fusos horários —do mar Ártico até o mar Negro e da fronteira da Europa livre até a margem do Alasca— e terá milhares de ogivas nucleares.

Já conheci uma Rússia que era forte, ameaçadora, mas estável —conhecida como União Soviética. Conheci uma Rússia esperançosa, potencialmente vivendo uma transição democrática sob Mikhail Gorbatchov, Boris Iéltsin e até mesmo o Putin mais jovem. Conheci uma Rússia governada por um Putin mais velho que agia como "bad boy", lançando ataques de hackers aos Estados Unidos e envenenando oposicionistas, mas que ainda assim era uma confiável e estável exportadora de petróleo e formava ocasionais parcerias de segurança com os EUA quando nós, em situação de aperto, precisávamos da ajuda de Moscou.

Vladimir Putin, no telão, fala para multidão em Moscou em comício sobre anexação de áreas da Ucrânia - Alexander Nemenov - 30.set.22 / AFP

Mas nenhum de nós jamais conheceu a Rússia que Putin, agora desesperado e empurrado contra a parede, parece estar determinado a criar: uma Rússia pária, uma Rússia grande e humilhada, uma Rússia que já levou muitos de seus mais talentosos engenheiros, programadores e cientistas a fugirem por qualquer saída que conseguem encontrar. Essa será uma Rússia que já terá perdido tantos parceiros comerciais que só conseguirá sobreviver como colônia fornecedora de óleo e gás natural à China —uma Rússia que será um Estado falido, jorrando instabilidade por todos seus poros.

Essa Rússia não seria apenas uma ameaça geopolítica. Seria também uma tragédia humana de proporções gigantescas. O processo de "norte-coreanização" da Rússia que Putin está impulsionando está convertendo um país que no passado deu ao mundo alguns de seus escritores, compositores, músicos e cientistas mais renomados em uma nação mais adepta em produzir batatas chips que microchips, mais famosa por suas cuecas com veneno que por sua alta-costura e mais focada em abrir as reservas de gás e petróleo de seu subsolo do que em estimular as reservas de genialidade e criatividade humana que possui.

O mundo inteiro está sendo amesquinhado pelo amesquinhamento da Rússia promovido por Putin.

Mas com a anexação anunciada na sexta-feira, fica difícil enxergar qualquer outra saída, enquanto Putin continuar no poder. Por quê? O especialista em teoria de jogos Thomas Schelling sugeriu que se você está jogando o "jogo do covarde" com outro motorista, a melhor maneira de ganhar —a melhor maneira de fazer com que o outro motorista se desvie primeiro, para evitar uma colisão— é, antes do jogo começar, você desatarraxar a direção de seu veículo e jogá-la pela janela, fazendo questão de mostrar ao outro motorista o que está fazendo. A mensagem transmitida ao outro motorista: bem que eu gostaria de sair de seu caminho, mas não estou mais no controle do meu carro. É melhor você desviar!

Procurar sempre ser mais louco que seu adversário é uma especialidade norte-coreana. Putin agora a adotou, anunciando com grande fanfarra que a Rússia está anexando quatro regiões ucranianas: Lugansk e Donetsk, as duas regiões apoiadas pela Rússia onde forças pró-Putin combatem Kiev desde 2014, e Kherson e Zaporíjia, ocupadas pouco após a invasão de Putin em fevereiro. Na sexta-feira, no grande salão do Kremlin, Putin declarou que os habitantes dessas quatro regiões se tornarão cidadãos da Rússia para sempre.

O que Putin está querendo realizar? Só podemos especular. Comecemos com sua política interna. A base de Putin não é formada pelos estudantes da Universidade Estatal de Moscou. Sua base são os nacionalistas de extrema direita, cada vez mais furiosos com a humilhação militar sofrida pela Rússia na Ucrânia. Para manter o apoio dessa base, Putin pode ter sentido a necessidade de mostrar que, com sua convocação dos reservistas e as anexações, ele está travando uma guerra real em prol da Mãe Rússia, e não apenas uma operação militar especial pouco definida.

Mas isso também pode ser Putin tentando manobrar para buscar um acordo negociado favorável. Eu não me surpreenderia se ele em breve anunciasse sua disposição de declarar um cessar-fogo e também de consertar gasodutos e retomar as exportações de gás a qualquer país que se disponha a reconhecer a anexação dos territórios pela Rússia.

Com isso, Putin poderia dizer à sua base nacionalista que ganhou algo com sua guerra, mesmo que esse algo tenha tido um custo altíssimo, e que agora está disposto a parar. Há apenas um problema: Putin não controla de fato todo o território que está anexando.

Isso quer dizer que ele agora não pode fazer qualquer acordo até que e a não ser que tenha expulsado os ucranianos de todo o território que agora reivindica —caso contrário, estaria entregando áreas que acabou de converter em território soberano russo. Isso pode ser muito sinistro. O Exército combalido de Putin não parece capaz de tomar mais território —na realidade, parece estar perdendo mais a cada dia que passa.

Receio que, ao reivindicar território que não controla plenamente, Putin esteja se encurralando. E que ele possa um dia enxergar uma arma nuclear como sua única saída.

De qualquer maneira, Putin parece estar desafiando Kiev e seus aliados ocidentais a manterem a guerra durante o inverno —quando o suprimento de gás natural para a Europa será restrito, e os preços podem ficar astronômicos— para tentar recuperar territórios, alguns dos quais seus representantes ucranianos já mantêm sob a influência russa desde 2014.

Será que a Ucrânia e o Ocidente vão se desviar? Vão tampar o nariz e fechar um acordo sujo com Putin para parar com sua guerra imunda? Ou a Ucrânia e o Ocidente vão enfrentar Putin, insistindo que ele não consiga nenhuma conquista territorial com esta guerra, para defender o princípio da inadmissibilidade da tomada de territórios à força?

Não se iluda: haverá pressão no interior da Europa para desviar e aceitar tal oferta de Putin. É esse, sem dúvida, o objetivo dele: dividir a aliança ocidental e sair dessa com uma "vitória" que lhe permita manter as aparências e evitar humilhação.

Mas existe outro risco de curto prazo para Putin. Se o Ocidente não se desviar, se não optar por um acordo com ele, mas em vez disso reforçar seu apoio à Ucrânia, com ainda mais armas e mais ajuda financeira, há uma chance de o Exército de Putin desmoronar.

Isso é imprevisível. Mas eis o que é totalmente previsível: uma dinâmica foi instaurada que vai empurrar a Rússia de Putin para ainda mais perto do modelo norte-coreano. Ela começa com a decisão de Putin de cortar a maior parte do fornecimento de gás natural à Europa ocidental.

Existe apenas um pecado capital na indústria energética: nunca, jamais se converta em fornecedor não confiável. Ninguém confiará em você, nunca mais. Putin se converteu em fornecedor não confiável de alguns de seus melhores e mais antigos clientes , a começar pela Alemanha e boa parte da União Europeia. Todos agora estão buscando uma alternativa —fornecedores de longo prazo de gás natural e a construção de mais energia renovável.

Serão precisos dois a três anos para as novas redes de gasodutos vindos do Mediterrâneo oriental e o gás natural liquefeito dos EUA e norte da África começarem a substituir o gás russo em grande escala e de maneira sustentável. Mas, quando isso acontecer, e quando a oferta mundial de gás natural aumentar, de modo geral, para compensar pela perda do gás russo —e também quando mais energia renovável ficar disponível— , Putin pode enfrentar um desafio econômico real. Pode ser que seus clientes antigos ainda comprem alguma energia da Rússia, mas nunca mais voltarão a depender tão completamente do país. E a China pressionará Putin para conseguir energia a preços muito descontados.

Em outras palavras, Putin está enfraquecendo sua maior fonte de renda sustentável de longo prazo —possivelmente sua única fonte. Ao mesmo tempo, sua anexação ilegal de regiões da Ucrânia garante que as sanções ocidentais à Rússia vão permanecer ou mesmo se intensificar. Isso, por sua vez, vai apenas acelerar a migração da Rússia para o status de Estado falido, na medida em que cada vez mais russos com qualificações globalmente vendáveis deixarem o país, como certamente farão.

Não aplaudo nada disso. Este é um momento para os líderes ocidentais serem ao mesmo tempo rigorosos e inteligentes. Eles precisam saber quando se desviar e quando obrigar o outro sujeito a se desviar. Precisam saber quando deixar alguma dignidade para o outro motorista, mesmo que ele esteja se comportando com descaso absoluto por todos. Pode ser que Putin não nos tenha deixado escolha possível senão aprender a conviver com uma Coreia do Norte russa —pelo menos enquanto ele estiver no comando do país. Se for esse o caso, teremos que nos conformar, mas o mundo ficará muito mais instável.

Tradução de Clara Allain

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