Thomas L. Friedman

Editorialista de política internacional do New York Times desde 1995, foi ganhador do prêmio Pulitzer em três oportunidades

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Ameaça à democracia em Israel faz Biden rever laços com o país de Netanyahu

Líder americano parece disposto a confrontar premiê israelense antes da corrida pela Casa Branca em 2024

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The New York Times

Quando me perguntam como ganho a vida, digo que sou tradutor do inglês para o inglês. Pego temas complexos e procuro torná-los compreensíveis, primeiro para mim mesmo e depois para os leitores. E é isso que quero fazer aqui com relação a três questões interligadas: por que o governo israelense está tentando subjugar a Suprema Corte de seu país? Por que o Joe Biden disse à rede americana CNN que esse é um dos governos mais radicais que ele já viu? E qual o motivo do embaixador americano em Jerusalém dizer que os EUA estão se esforçando para impedir que Israel "descarrile"?

A resposta curta às três perguntas é que a equipe de Biden vê o governo israelense de ultradireita liderado por Binyamin Netanyahu engajado em um comportamento radical sem precedentes —sob a desculpa de uma "reforma" judicial— que prejudica interesses americanos compartilhados com Israel, de importância crucial sobre o status da Cisjordânia, que conseguiu manter vivas as esperanças de paz.

Pessoas fazem em protesto contra o primeiro-ministro israelense, Binyamin Netanyahu, e a reforma judicial de seu governo em Jerusalém - Ronen Zvulun - 11.jul.23/Reuters

Se você quiser ter uma noção mínima da tensão entre os EUA e esse governo, considere que, horas depois de Biden ter falado a Fareed Zakaria, da CNN, o ministro da Segurança Nacional israelense, Itamar Ben-Gvir, disse ao presidente americano que "Israel já deixou de ser mais uma estrela na bandeira americana". Ou seja: para o presidente parar de se intrometer.

Segundo um relatório de 2020 do Serviço de Pesquisa Congressional, Israel é o país que recebeu mais ajuda dos EUA desde a Segunda Guerra —US$ 146 bilhões (R$ 704 bilhões), sem incluir a inflação no cálculo. É uma ajuda e tanto e deveria ter merecido um pouco mais de respeito pelo presidente dos EUA da parte de Ben-Gvir, que em sua juventude foi condenado por incitação ao racismo contra árabes.

Entre os diplomatas americanos que vêm tratando com Netanyahu, um homem dotado de tino e talento político considerável, o sentimento reinante é de choque. Eles acham difícil acreditar que Bibi se comporte como pau-mandado de gente como Ben-Gvir, que ele se disponha a colocar em risco as relações de Israel com os EUA e com investidores globais, sob risco de uma guerra civil, apenas para conservar-se no poder com um grupo de ultranacionalistas.

Mas a situação é o que é. E está feia. Dezenas de milhares de defensores da democracia fecharam ruas e rodovias e cercaram o aeroporto de Tel Aviv na terça-feira para deixar claro a Netanyahu que, se ele pensa que pode apagar a democracia com um simples sopro, está muitíssimo enganado.

O desabamento dos valores compartilhados por EUA e Israel começa com o fato de que a coalizão governante de Netanyahu, que chegou ao poder com dificuldade, decidiu comportar-se como se tivesse tido uma vitória arrasadora. E ainda mudou o equilíbrio de longa data entre o governo e a Suprema Corte, o único controle independente do poder político.

Netanyahu e seus colegas começaram nesta semana a aprovar à força no Knesset um projeto de lei que vai impedir o Judiciário de usar a doutrina de razoabilidade há muito estabelecida na lei local. Essa norma confere à Suprema Corte o direito de rever e reverter decisões consideradas insensatas ou antiéticas tomadas pelo governo, por ministros e outros políticos eleitos.

Como escreveu na segunda-feira David Horovitz, o editor fundador do centrista Times of Israel, "apenas um governo determinado a fazer o que é irracional tentaria assegurar que os juízes da Suprema Corte não pudessem reavaliar a prudência de suas políticas".

O órgão é o único freio ao poder da maioria em um país que não tem Constituição e não conta com uma defesa consagrada e inviolável da liberdade de religião, expressão e outros direitos fundamentais.

Uma transformação tão enorme no respeitado sistema judicial de Israel é algo que só deveria ser feito após ser estudado por especialistas não partidários e com base em um consenso nacional amplo. É assim que as democracias de verdade fazem essas coisas, mas não houve nada disso, o que deixa claro que essa farsa toda não tem relação alguma com uma suposta reforma judicial, mas tudo a ver com um esforço descarado de tomada do poder pela coalizão do premiê.

Os colonos judeus querem a Suprema Corte fora de seu caminho para que possam construir assentamentos em toda a Cisjordânia e confiscar terras de palestinos sem dificuldade. E os ultraortodoxos almejam a Suprema Corte fora de seu caminho para que ninguém possa dizer a seus filhos que eles devem servir nas Forças Armadas de Israel ou ordenar às suas escolas para ensinar inglês, matemática, ciência e valores democráticos. E Netanyahu quer o órgão longe para que ele possa nomear os paus-mandados que ele quiser para os cargos-chave.

Na segunda-feira, o projeto de lei de reforma judicial recebeu a primeira das três leituras pelas quais precisa passar, algo que o governo de Netanyahu diz que quer que seja concluído antes de o Knesset iniciar seu recesso em 31 de julho. Dá para imaginar os EUA emendando sua Constituição em questão de poucos meses, sem uma discussão nacional séria ou tentativas de formar um consenso?

Se as centenas de milhares de defensores da democracia israelense que vêm saindo às ruas todos os sábados há mais de meio ano não conseguirem impedir a máquina de Netanyahu de aprovar essa lei à força, ela vai, como escreveu o ex-premiê Ehud Barak no Haaretz, "degradar Israel, convertendo-o em uma ditadura corrupta e racista que vai fazer a sociedade desmoronar e vai isolar o país".

Manifestantes protestam contra o primeiro-ministro israelense, Binyamin Netanyahu, e a revisão judicial de seu governo, em Tel Aviv - Ammar Awad - 11.jul.23/Reuters

Sob o acordo original de formação do governo que Netanyahu firmou no ano passado com seus parceiros de direita, ele nomeou Aryeh Deri, líder do partido ultraortodoxo Shah, para ser inicialmente ministro do Interior e da Saúde e depois, em dois anos, ministro das Finanças, em rotação com o líder do Partido Religioso Sionista, Bezalel Smotrich.

Aryeh Deri já foi condenado três vezes por crimes financeiros que o colocaram na prisão. A Suprema Corte, por 10 votos a um, disse a Netanyahu em janeiro passado que sua nomeação de um sonegador de impostos e receptor de propinas para ser ministro do governo não foi razoável.

Netanyahu, sendo ele próprio julgado por corrupção, quer castrar a Suprema Corte para que ela não possa impedi-lo de nomear seu sonegador fiscal para ministro das Finanças, para comandar, entre outras coisas, as contribuições de israelenses e americanos ao Tesouro. Que espécie de "reforma" judicial é essa?

Um dos mais importantes interesses compartilhados por Israel e os EUA era a ficção de que a ocupação israelense da Cisjordânia era apenas temporária e que um dia poderia haver uma solução de dois países, com a criação de um Estado para os 2,9 milhões de palestinos da Cisjordânia. Logo, os EUA não precisariam se preocupar com os mais de 500 mil colonos israelenses que se assentaram ali.

Devido a essa ficção compartilhada, os EUA quase sempre defenderam Israel na ONU e no Tribunal Penal Internacional (TPI) contra diversas resoluções ou julgamentos segundo os quais Israel não estava ocupando a Cisjordânia temporariamente, mas anexando-a.

Este governo israelense agora está fazendo tudo que pode para destruir essa ficção que lhe garantia tempo. Desde que tomou posse, Netanyahu já aprovou a construção de mais de 7.000 novas unidades habitacionais, a maioria no meio da Cisjordânia. E o governo emendou uma lei para permitir que colonos irregulares retornem a quatro assentamentos dos quais haviam sido expulsos pelo Exército.

Bezalel Smotrich, o ministro das Finanças de Netanyahu, declarou em março que "não existem palestinos porque não existe povo palestino".

A destruição dessa ficção compartilhada agora está criando um problema real para outros interesses de EUA e Israel: ameaça a estabilidade da Jordânia, um interesse vital de ambos os lados. Está levando os países árabes que se uniram a Israel nos Acordos de Abraão a recuar um passo. Está levando os sauditas a repensar realmente se querem avançar com a normalização de relações com um regime tão imprevisível.

E está forçando os Estados Unidos a fazerem uma escolha. Se o governo de Netanyahu vai agir como se a Cisjordânia fosse Israel, então os EUA terão que insistir sobre duas coisas. Primeiro, que o acordo de isenção de visto que Israel quer dos EUA –que autorizaria o ingresso em território americano sem visto de cidadãos israelenses, incluindo os mais de 500 mil colonos israelenses que vivem na Cisjordânia— deve se aplicar também a todos os 2,9 milhões de palestinos da Cisjordânia.

Por que um colono israelense da cidade de Hebron, na Cisjordânia, deve ter o direito de ingressar nos EUA sem visto e um palestino de Hebron não deve ter o mesmo direito, especialmente quando este governo está dizendo que o município pertence a Israel?

Por que os EUA devem continuar a defender na ONU e no TPI que Israel está apenas ocupando a Cisjordânia temporariamente –logo, não está praticando alguma forma de apartheid ali—, quando o governo israelense atual parece estar abertamente determinado a anexar a Cisjordânia e concedeu a dois dos radicais mais ativos, Smotrich e Ben-Gvir, extensos poderes de segurança e financeiros sobre os assentamentos?

Moderado, o presidente israelense, Isaac Herzog, vem implorando à coalizão de Netanyahu para não impor quaisquer mudanças ao Judiciário e para fazê-lo apenas com um consenso nacional. Ele vai se reunir com Biden em Washington na próxima semana. É o jeito do líder americano de assinalar que ele não tem problemas com o povo de Israel, mas com o gabinete extremista de Bibi.

Mas não tenho dúvida de que Biden vai confiar ao presidente israelense a mensagem de que uma reavaliação do relacionamento se torna inevitável. Não falo de uma reavaliação de cooperação militar americana e de inteligência com Israel, mas de nossa abordagem diplomática básica a uma Israel que está descaradamente se entrincheirando em uma solução de um Estado judaico apenas.

Tal reavaliação representaria uma medida de "disciplina com carinho" para Israel, mas é uma necessidade real, antes que Israel saia completamente dos trilhos. O fato de que Biden está disposto a confrontar Netanyahu antes da eleição de 2024 sugere que o presidente acredita que, nessa questão, ele tem o apoio não apenas da maioria dos americanos, mas da maioria dos judeus americanos e até mesmo dos judeus israelenses.

Ele tem razão nos três quesitos.

Tradução de Clara Allain

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