Thomas L. Friedman

Editorialista de política internacional do New York Times desde 1995, foi ganhador do prêmio Pulitzer em três oportunidades

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Se Putin fosse deposto, o mundo inteiro perderia

Presidente russo transformou país em bomba-relógio ativada que se estende por 11 fusos horários

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The New York Times

Personagem que parece saído do filme "007 Contra o Satânico Dr. No", Ievguêni Prigojin lidera um comboio de ex-presidiários e mercenários numa corrida maluca para tomar a capital russa, derrubando alguns helicópteros militares russos no caminho.

Eles encontram tão pouca resistência que a internet está cheia de fotos de seus mercenários fazendo fila pacientemente para comprar um café: "Daria para colocar tampa? Não quero derramar no meu tanque!".

Mas então, tão repentinamente quanto partiram, quando seus homens chegaram a 190 quilômetros de Moscou, Prigojin parece ter tomado consciência de que seu comboio na rodovia aberta seria um alvo perfeito para um ataque aéreo decidido. Então ele optou por um acordo negociado pelo presidente de Belarus e cancelou sua revolução —desculpe, não foi essa a intenção, eu só estava querendo apontar para alguns problemas com o Exército russo—, e todo o mundo deu o caso por encerrado.

O presidente russo, Vladimir Putin, discursa em uma reunião do conselho consultivo do Parlamento russo em São Petersburgo
O presidente russo, Vladimir Putin, discursa em uma reunião do conselho consultivo do Parlamento russo em São Petersburgo - Alexandr Demianchuk - 27.abr.23/Sputnik/AFP

É muito difícil saber que ameaça Vladimir Putin, que tem coração de pedra, transmitiu a seu antigo amigo Prigojin. Mas é evidente que chamou a atenção deste, porque, se existe alguém que sabe que o presidente da Rússia é um assassino, é seu sicário.

Como o sinistro Ernst Stavro Blofeld, o vilão dos filmes de 007 que comanda a organização criminosa internacional Spectre e geralmente acariciava seu gato branco enquanto tecia tramas assassinas, Putin frequentemente é visto sentado à cabeceira de sua mesa branca de seis metros de comprimento, com seus visitantes geralmente acomodados na extremidade oposta, onde, desconfiamos, um alçapão os aguarda, pronto para engolir qualquer um que ouse desagradar ao chefe.

Enquanto assistia a esse drama se desenrolando na CNN e depois sendo repassado nos últimos dias, minha primeira reação foi especular: será que foi tudo de verdade? Não sou entendido em conspirações, mas esse roteiro estilo Grande Motim no Rio Moscou não fica nada a dever a "Com 007 Viva e Deixe Morrer". É um roteiro ainda em execução, com o Putin analógico tentando acompanhar a história na TV estatal russa, enquanto o digitalmente esperto Prigojin continua a deixá-lo no chinelo no Telegram.

Quanto à pergunta que muitos leitores me fizeram —"o que vai acontecer com Putin agora?"—, é impossível prever. Mas eu tomaria cuidado. Não descartaria Putin tão rapidamente. Vale lembrar que Blofeld apareceu em seis filmes de James Bond até ser finalmente eliminado pelo 007.

Creio que só o que podemos fazer por enquanto é calcular os diferentes equilíbrios de poder que estão moldando esta história e analisar quem poderá fazer o quê nos próximos meses.

Permita-me começar com o maior equilíbrio de poder, que nunca deve ser perdido de vista. Presidente Joe Biden, suba ao palco, por favor, para receber aplausos merecidos. Foi a coalizão ampla e sustentada que ele reuniu para enfrentar Putin na Ucrânia que arrancou a fachada da aldeia de Potemkin do líder russo.

Gostei da descrição feita nesta semana no jornal Haaretz por Alon Pinkas, ex-diplomata israelense nos Estados Unidos: Biden entendeu desde o início que Putin "é o epicentro de uma constelação antiamericana, antidemocrática e fascista que precisa ser derrotada —não negociada. Para ele, o motim de Prigojin "fez o que Biden vem fazendo nos últimos 18 meses: expondo as fraquezas de Putin, perfurando seu verniz já furado de suposta genialidade estratégica e aura de invencibilidade".

Putin governa há anos com dois instrumentos: medo e dinheiro, encobertos pelo manto de nacionalismo. Ele comprou aqueles que conseguiu comprar e prendeu ou matou os que não conseguiu. De fato, o sempre prestativo presidente da Belarus, onde Prigojin teria reaparecido na terça-feira, disse que Putin lhe falou que desejava matar seu comandante mercenário traiçoeiro –queria "esmagá-lo como um inseto".

Mas alguns observadores da Rússia argumentam que o medo agora deixou o edifício em Moscou. Com a aura de invencibilidade de Putin aparentemente rasgada, outros poderão desafiá-lo em breve. Veremos.

Se eu fosse Prigojin ou um de seus aliados, porém, ficaria longe de qualquer um visto andando por uma calçada na Belarus com guarda-chuva em dia de sol. Putin tem sido bastante eficaz em eliminar críticos. E nunca devemos subestimar o medo profundo dos russos de qualquer retorno ao caos do início dos anos 1990, após a queda da União Soviética, e de quão gratos muitos ainda estão pela ordem que ele restaurou.

É no equilíbrio de poder de Putin com o resto do mundo que as coisas ficam complicadas, porque nós no Ocidente temos tanto a temer da fraqueza de Putin quanto de sua força. Ainda não há sinal de que o motim de Prigojin ou a contraofensiva ucraniana tenham causado qualquer colapso significativo das forças russas na Ucrânia —mas ainda é cedo para tirar quaisquer conclusões finais.

Autoridades americanas argumentam que a estratégia de Putin consiste em fazer o Exército ucraniano esgotar seu estoque de obuses de artilharia de 155 mm, o esteio de suas forças terrestres, e também de seus interceptadores antiaéreos, o que deixaria suas forças terrestres a nu, vulneráveis a ataques aéreos russos. E depois tentar continuar firme até que os aliados ocidentais se cansem, ou que Donald Trump seja reeleito e Putin consiga um acordo sujo com o qual evite ser humilhado na Ucrânia.

Não é uma estratégia insensata. A Ucrânia dispara tantos projéteis de 155 mm –até 8.000 por dia— que a equipe de Biden agora está tendo dificuldade em encontrar mais estoques antes que as novas fábricas que vão produzir os armamentos entrem em operação em 2024.

A logística tem importância. Também faz diferença se você está jogando na defensiva ou na ofensiva —a ofensiva é mais difícil, e os russos agora estão realmente entrincheirados e semearam minas terrestres em todas suas linhas de defesa, razão pela qual a contraofensiva ucraniana começou devagar.

Tudo isso dito, devemos nos preocupar tanto com a perspectiva da derrota de Putin quanto a de qualquer vitória. E se Putin fosse deposto? Não estamos vivendo um momento como os últimos dias da União Soviética. Não existe nenhuma figura respeitável ou decente, semelhante a Boris Ieltsin ou Mikhail Gorbatchov, com o poder e o reconhecimento público para assumir as rédeas do poder imediatamente.

"A velha União Soviética tinha instituições, o partido e os órgãos de Estado centrais e provinciais que cuidavam de seus redutos e de alguma ordem de sucessão", disse-me Leon Aron, estudioso da Rússia no American Enterprise Institute e cujo livro sobre a Rússia de Putin será lançado em outubro. "Quando Putin chegou ao poder, ele destruiu ou subverteu todas as estruturas políticas e sociais fora do Kremlin."

Mas Aron acrescentou que a história russa abrange algumas reviravoltas surpreendentes. "No mais longo prazo, historicamente falando, os sucessores dos governantes reacionários russos muitas vezes foram mais liberais, especialmente no início de seu governo: Aleksandr 1º após Pavel 1º, Aleksandr 2º após Nikolai 1º, Kruschev após Stálin, Gorbatchov após Andropov. Portanto, se conseguirmos passar por uma transição a partir de Putin, haverá alguma esperança."

No curto prazo, porém, se Putin fosse deposto, é bem possível que acabemos com algo pior. Como você se sentiria se fosse Prigojin quem estivesse no Kremlin hoje, comandando o arsenal nuclear russo?

Outra possibilidade é desordem ou guerra civil e a fragmentação da Rússia em feudos dominados por comandantes de guerra ou oligarcas. Por mais que eu deteste Putin, detesto a desordem ainda mais, porque quando um grande Estado se fragmenta é muito difícil remontá-lo. As armas nucleares e a criminalidade que poderiam transbordar de uma Rússia desintegrada transformariam o mundo.

Isto não é uma defesa de Putin. É uma expressão de raiva com o que ele fez a seu país, convertendo-o numa bomba-relógio ativada que se estende por 11 fusos horários. Putin fez o mundo inteiro de refém.

Se vencer, o povo russo perderá. Mas se perder e seu sucessor for a desordem, o mundo sairá perdendo.

Tradução de Clara Allain

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