Tom Farias

Jornalista e escritor, é autor de "Carolina, uma Biografia" e do romance "Toda Fúria"

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Descrição de chapéu Folhajus

Juíza negra na Suprema Corte dos EUA reforça luta contra supremacia branca

Ketanji Brown Jackson é a primeira mulher afro-americana a ser alçada a um dos postos mais importantes do país

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O dia 7 de abril já está no calendário das grandes datas da história americana, após o anúncio e a confirmação do nome da advogada Ketanji Brown Jackson, de 51 anos, como a primeira juíza negra da Suprema Corte dos Estados Unidos.

A Suprema Corte, também conhecida como Supremo Tribunal dos Estados Unidos, foi instituída no dia 4 de março de 1798, em Washington, como o mais alto tribunal federal jurídico do país. Possui autoridade jurídica majoritária para julgar e decidir questões de grande relevância e defender a Constituição Federal. Portanto, está entre os três pilares que pautam o Estado americano, ao lado do Poder Executivo e do Poder Legislativo.

Sendo o órgão máximo de defesa da lei em todo território americano, não se explica por que, só depois de 233 anos de sua​ criação, a instituição tenha admitido pela primeira vez a entrada de uma mulher negra nos seus nobres quadros decisivos.

A juíza Ketanji Brown Jackson em cerimônia com o presidente americano Joe Biden e a vice-presidente Kamala Harris - Xinhua/Liu Jie

Os EUA são um desafio para mentes e corações humanos em todo planeta. No entanto, potência econômica e bélica, com franco poder de vida e de morte, ainda têm práticas consideradas arcaicas, destruidoras e antirrepublicanas para o contexto de uma nação com tanto poder de domínio e decisão.

Historicamente, o país que conhecemos hoje como Estados Unidos da América foi formado originalmente por 13 colônias exploradas por ingleses. Até antes da independência, decretada no dia 4 de julho de 1776, os governadores-gerais, seus primeiros dirigentes máximos, eram escolhidos pelo rei da Inglaterra.

As colônias eram então divididas em duas partes, entre sul e norte. As do norte tiveram por modelo de economia a pequena propriedade privada, baseada no trabalho livre e assalariado, ou seja, no binômio capitalista operário e patrão. Já as colônias do sul tiveram formação oposta, com concentração de latifúndios e o uso da mão de obra negra escravizada, trazida diretamente do continente africano.

Os negros nos Estados Unidos ficaram, durante anos, algo que se reflete ainda nos dias de hoje, bastante alijados de direitos humanos. Com isso, a luta pelos direitos civis causou e causa tantas fissuras no sistema social, promovendo uma legislação repressora majoritariamente contra negros, massivamente encarcerados. É desse período que surgem figuras como Martin Luther King Jr. e Malcolm X – ambos assassinados, efeito da resposta do sistema racista repressor.

Isto não impediu que, na brecha da lei e de enfrentamentos e lutas, muitas delas sangrentas, alguns avanços fossem conquistados pela população negra americana –que representa, segundo censo de 2020, em 50 estados da federação, cerca de 12,4% ou 41 milhões de afro-americanos.

Com as instituições das leis discriminatórias, identificar-se negro nos Estados Unidos se tornou uma espécie de sobrevida. Nos EUA, foi aplicada a "one drop rule" —ou regra de uma gota— que estabelece que todo tipo de pessoa americana com qualquer ancestralidade africana, mesmo que muito remota, seja considerada negra. O primeiro estado a adotá-la foi o Tennessee, em 1910.

Estas incongruências dos estabelecimentos das normais e leis americanas possibilitaram o surgimento de instituições de ensino superior, conhecidas pela sigla HBCUs –historically black colleges and universities—, marco divisor do acesso de negros e negras a posições de destaque em todo o país. Já chegaram a ser pouco mais de 120 no total, sendo a mais famosa delas hoje a Universidade Howard, fundada em 1867, por Oliver Otis Howard, um homem branco, conhecido como o "general cristão".

A história afro-americana deu nomes importantíssimos, destacando-se o ativista e escritor Frederick Douglass, conhecido como "o sábio de Anacostia", Sojourner Truth, ex-escravizada e líder dos direitos das mulheres afro-americanas, Condoleezza Rice, Colin Powell, Robert Curbean, Michael Jordan, culminando no ex-presidente Barack Obama e na atual vice-presidente, Kamala Harris, sem esquecer da duquesa de Sussex, a americana Meghan Markle, esposa do príncipe Henry, membro da família real britânica.

Ao citar a duquesa Meghan Markle e o príncipe Henry, me recordei da história da rainha consorte Sophie Charlotte (1744-1818), de descendência direta de uma africana, a provável portuguesa Madragana Bem Aloandro, amante do rei Afonso 3º (1210 -1279), de Portugal. Culta, Charlotte era esposa de George 3º, rei da Inglaterra, e amiga de Johann Christian Bach, com quem teve aula de música, e Wolfgang Amadeus Mozart, além de gostar muito de beber chá —introduzido no reino inglês pela lusitana, e igualmente rainha, Catarina de Bragança, quase um século antes—, sendo a segunda consorte mais antiga do trono britânico, recorde batido apenas pelo marido da atual rainha Elizabeth 2ª, que, apesar de torcer o nariz, tem uma ancestral pretinha na sua real árvore genealógica.

Portanto, a escolha da juíza Ketanji Brown Jackson cobre de forte simbolismo a luta contra a supremacia branca americana, e mundial, e a segregação racial do seu país. Ela é filha do advogado Johnny Brown, em quem se inspirou na carreira, antes de ingressar na Universidade Harvard, e da diretora de escola Ellery Brown, ambos formados numa HBCU.

O alto alcance da posição conquistada por Ketanji deve servir de inspiração para todos os habitantes do Brasil, onde a presença de negros e negras na magistratura ainda é algo longe de representar alguma escala de importância e significação.

No Rio de Janeiro, por exemplo, apenas uma única mulher negra acessou o posto de desembargadora do estado –Ivone Caetano, hoje aposentada.

Não é difícil de se supor que essa história está longe de se modificar. É o que mostra a pesquisa "Negros e Negras no Poder Judiciário", veiculada em 2021 pelo CNJ, o Conselho Nacional de Justiça, com consultas entre os 90 tribunais oficiados e instados a responder, incluindo os quatro tribunais superiores —Superior Tribunal de Justiça, Tribunal Superior do Trabalho, Tribunal Superior Eleitoral e Tribunal Superior Militar—, além dos 27 tribunais de justiça estaduais, do Distrito Federal, os cinco tribunais regionais federais, os 24 tribunais regionais do trabalho, os 27 tribunais regionais eleitorais e os três tribunais militares estaduais.

Dados do CNJ apontam que o número de magistrados que ingressaram nos cargos de alta patente era de 12%, entre 2013 e 2015, e "subiu" para 21%, de 2019 e 2020, perfazendo pouco mais de 10 mil pessoas, pelo levantamento da pesquisa, com base nos formulários respondidos.

O sistema de cotas nas universidades públicas se encontra ameaçado, o que afronta o Estatuto da Igualdade Racial, aprovado pelo Congresso em 2010 w sancionado durante o governo do presidente Lula e na gestão do então ministro Elói Ferreira de Araújo.

Pelo visto, a caminhada ainda é longa na defesa da cidadania negra no Brasil, cuja população representa atualmente 54% de cidadãos e cidadãs, segundo o IBGE em 2020.

Continuamos a dar péssimo exemplo de relações humanas em todas as áreas do conhecimento, mas não por falta de qualificação profissional ou acadêmica dos afro-brasileiros ou afro-brasileiras. O racismo atende por um dos maiores fatores do fechamento de portas para o empoderamento de negros e negras no país, não só nos postos da magistratura, mas praticamente em todas as esferas do conhecimento, sobretudo no campo da política brasileira —do Executivo ao Legislativo.

Eis aí uma ótima reflexão que espero que perturbe o justo sono dos nossos doutos candidatos presidenciáveis, sejam eles —ou elas— de que coloração partidária, religiosa ou ideológica for. Fica a dica.

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