Veny Santos

Escritor, jornalista e sociólogo, é autor de "Batida do Caos" e "Nós na Garganta".

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Sonho da casa própria é questão de vida ou morte para quem vive sob risco

Falta humanidade aos indiferentes à luta por terra, por habitação, por dignidade e pelo direito de se construir

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Tudo começa quando o chão vira terreno. Quando um espaço até então sozinho passa a ser solo de alguém e ter nome. Décadas de luta para conseguir a base que servirá de apoio à família e suas crias. Quantas trouxas de roupas lavadas? Quantas horas de trabalho excessivo? Quanto da saúde do corpo, da mente e do espírito precisou ser gasto? Muito. O investimento leva uma vida inteira para que as demais não sejam obrigadas a existir pela metade —sem ter onde dormir, onde ser com o mínimo de dignidade.

A casa própria é, e por muito tempo ainda será, o objetivo de muitos e muitas nas periferias, ruas, abrigos, vielas e todos os cantos onde sobrevivem os ignorados. Poucos, entretanto, conseguirão concretizá-lo. A luta por moradia é ancestral, principalmente quando se trata da população preta e dos povos originários.

Moradores da favela de Paraisópolis se aquecendo diante de fogueira feita em cima de morro, em São Paulo - Eduardo Knapp - 14.ago.14/Folhapress

Desde o massacre de nativos até o sequestro e tráfico de africanos para as colônias europeias, vê-se o montante de pessoas lançadas aos espaços como foram à própria sorte: nunca habitantes, sempre transeuntes, invasoras de seus próprios territórios. Varridas dos centros para não prejudicarem sua imagem "limpa". Amontoadas em caçambadas e levadas de um lado para o outro, suspensas no ar, sem nunca terem aonde chegar —pois nenhum lugar as abriga.

Nem Estado nem mercado querem uma vizinhança assim. Nunca serão bem-vindos. Incomodam só de passar perto da morada dos outros. Sem casa, sem escritura, "analfabetizados" numa arquitetura que os priva de identidade própria, sempre como visitas indesejadas, inquilinos devedores, sem sobrado, apenas sobrando nas ruas que nem lhes fazem residência.

Enquanto o complexo problema da falta de moradia para a população de baixa —ou nenhuma— renda não for tratado como urgência em todas as capitais deste país, em todas as regiões rurais, absolutamente nenhum avanço social será tão concreto quanto o sentimento de abandono e descaso que ocupa os cômodos incômodos das tantas cabeças quentes que não conseguem pregar os olhos sem um teto.

Recentemente, diversas cidades presenciaram atos ligados à Campanha Despejo Zero, cujo intuito foi ajudar famílias em situação de vulnerabilidade habitacional ao longo da pandemia do coronavírus. A partir de uma decisão do Supremo Tribunal Federal tomada em 2021, ações de despejo, desocupação, remoções forçadas e reintegração de posses permaneceriam pausadas até 31 de março deste ano. Com a proximidade da data de encerramento da medida, diversas organizações se mobilizaram em atos cujo lema foi "Prorroga STF", mas que não se limitaram a ele.

Como pauta central estava a antiga e ampla luta por moradia. O direito de ter onde ficar, parir, cuidar, crescer, morrer e continuar como terra, como terreno, como casa que foi construída pela avó, pelo avô, pelos pais e que um dia será a casa das filhas, das netas, a casa onde o futuro é bem acolhido.

Se a realidade das classes médias altas permitem que, hoje, elas pensem em moradia fixa como desperdício de dinheiro, investimento ultrapassado ou algo que prende e atrapalha sua liberdade de deslocamento, é porque em certo momento da história de sua parentada alguém valorizou o imóvel. O ponto de partida precisa, de fato, existir.

Há quem ainda esteja longe de adquirir um bem tão essencial e, por isso, o desespero é mais do que compreensível. Entre a camada pobre da sociedade, fruto de gerações desabrigadas, o planejamento primeiro está ligado à sobrevivência. Uma vez vivos, por mais um dia, é possível buscar por outros elementos fundamentais como a moradia. O que ainda é tratado por "sonho da casa própria", na verdade, é questão de vida ou morte para quem se vê obrigado a ocupar áreas com risco de desabamento, sem saneamento básico, sem assistência mínima. Não há com o que sonhar se acordado o que se vive é o pesadelo da realidade.

A administradora, escritora e podcaster Nath Finanças, em seu Twitter, tocou recentemente em uma questão elementar para quem vive ou viveu a realidade pobre deste país. Independência financeira muitas vezes se traduz na compra da casa própria para a mãe.

Uma independência dos dependentes, afinal, são os filhos e filhas que, graças ao sustento sofrido dos pais, conseguiram estudar e garantir um emprego com salário literalmente mínimo que lhes proporcionasse algum respiro. É uma emancipação coletiva, é a mãe se tornando mais uma vez casa, para si e para as crias de suas crias. Uma casa para o futuro.

Não há como ignorar os atos ocorridos neste mês em prol da moradia para a camada pobre da população. Não há como ser indiferente a anos de luta por terra, por habitação, por dignidade, pelo direito de se construir. Se há, então falta humanidade.

Dos barracos à Cohab, das ocupações aos assentamentos, o que se vê é o sentimento concreto –e não apenas sonho— de quem tem nome, sobrenome e batalha por um endereço. O lugar para chamar de seu e dos seus.

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