Veny Santos

Escritor, jornalista e sociólogo, é autor de "Batida do Caos" e "Nós na Garganta".

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Veny Santos

De Racionais MC's às cotas, escrevi contra o racismo com cabeça erguida

Mantendo uma coluna neste espaço há um ano, não perdi de vista o compromisso que me fez abordar esses assuntos

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Uma das primeiras lições que aprendi de meu pai foi: olhe para o chão enquanto anda. Quando criança, os pés parecem ter vida própria e dão passos antes mesmo de ordenarmos. O tom era de bronca, então só me restava obedecer. Evitar que o filho tropeçasse e caísse no meio da rua era uma das prioridades —tanto pela segurança quanto pela vergonha da cena.

Conforme fui crescendo, passei a questionar essa exigência de meu pai. Eu gostava era de caminhar olhando para tudo e todos, curiosamente procurando pelos cantos que ninguém via. Comigo era olho no olho. Não desviava, queria conhecer os lugares todos e me incomodava demais ouvir repetidamente "olha pro chão, rapaz, senão vai cair". Se com o pai não tinha conversa, fui então reclamar com minha avó, a mãe dele.

Homem caminha perto do vale do Anhangabaú, na região central de São Paulo
Homem passa próximo ao vale do Anhangabaú, na região central de São Paulo - Rivaldo Gomes - 5.nov.21/Folhapress

Eu disse que não gostava de andar de cabeça baixa, mirando o chão, pois sentia como se estivesse devendo algo ou constrangido comigo mesmo diante dos olhares alheios. Ela, sob o manto de sabedoria das mulheres de Carira, me disse: "Teu pai te mandou baixar os olhos, não a cabeça". Não tive o que responder, mas pensei muito no que foi dito. Dali, daquelas curtas palavras, tirei um ensinamento que carrego e não abro mão. A visão se mantém na caminhada.

Resgato tal memória para marcar meu primeiro ano escrevendo na Folha como um de seus colunistas. Aqui, neste espaço, percorri bastante pelas entrelinhas e, de cabeça erguida, não perdi de vista o compromisso que me fez escrever para, de fato, ser lido. Visão, caminhada, propósito. Muito andei, é quente.

O primeiro escrito traçou meu objetivo neste jornal: demonstrar a diversidade como estratégia de sobrevivência para quem vive nas regiões periféricas e vistas como homogeneizadas, pouco plurais, estereotipadas e finitas de ideias. A diferença traz a manha, originalidade e sagacidade de quem precisa dar seus pulos para garantir que amanhã será mais um dia de corre. E de corre nós entendemos.

Às quatro da madrugada, são Marias e mais Marias a se levantar para o trabalho. Matriarcas quietas que só abrem a boca para amargá-la com café. Partem, mas antes olham para os filhos e filhas, para a casa batida no suor, respiram fundo e vão, com fé em si mesmas. São elas, as Marias, que nutrem as quebradas e fazem de tais espaços o quilombismo na prática. É parede com parede, gente com gente, e as desavenças não superam a necessidade comum de sobreviver.

Abdias não poderia faltar nos meus escritos, pois motivado por ele eu escrevo. Livros e mais livros que nos ensinam sobre outros tempos, vidas e críticas a males que são atemporais. Organizações —como Kilombo Kebrada e Biblioteca Assata Shakur— que carregam o legado de luta ancestral e também levam orgulho ao povo eu não poderia deixar de citar. Quanto mais nos conhecemos, mais enxergamos nossa grandeza.

Pouco importa o que pensam aqueles que odeiam filhos de porteiros em universidades, consideram normal o acesso majoritariamente branco e elitista ao ensino superior e chamam de "casos perdidos" jovens com potencial para Malcolm X. O que esperar de viúvos de estátuas? Seus símbolos, mesmo erguidos, não passam de cinzas que serão varridas por novas lideranças. É importante que saibam, estes com ócio para o ódio, que enquanto tratarem como "acidente" o assassinato de mulheres negras grávidas ou "fatalidade" o de irmãos africanos, teremos questões mais relevantes para considerar. Questões essas que também nos obrigam a encarar nossa "deseducação".

Carter G. Woodson jamais teria sido um intelectual citado ao acaso, assim como W.E.B. Du Bois e Kabengele Munanga. Seus trabalhos miram justamente o que ainda nos afeta na base: uma educação que não forma o povo preto e pobre para que tenha capacidade técnica junto da consciência política e social sobre quem se é e, principalmente, quais foram as grandes civilizações que precederam a invasão colonial. Sem referência, fundamento e estrutura, ou seja, sem chão, não há visão baixa que evite o tombo.

Aos professores das escolas de quebrada, atribuí a manutenção da luta para que crianças e adolescentes conseguissem terminar os estudos e cair no mundão com alguma instrução. Torci para que o mestre que mencionei tivesse lido a coluna. Se leu, reconheceu o papel fundamental que teve. É nestes ambientes de tantas adversidades que se revela um saber próprio dos que não nasceram para durar muito —e por isso se fizeram durar.

Futebol de várzea nos campinhos de barro e nas palavras de Akins Kintê, as tantas esquinas e suas sociologias próprias, a literatura de Ferréz e Sacolinha que coloca o "marginal" no centro de seu próprio universo, do Museu dos Meninos ao Sujeito Homem e sua responsabilidade, de Rappin’ Hood a Racionais, um senso comunitário que deveria ser regra e não uma subcategoria qualquer, a luta para entrar numa faculdade e encarar o "mundo real", a relação entre o desejo de ter e de ser ao mesmo tempo, o consumo, a noção de que "ambição não é ganância" —como tão bem rimou Tássia Reis, o pobre, a fome, os ossos, a fila, o açougue, em pleno século 21, no agora, no hoje e, por algum tempo, ainda no amanhã. Muito andei, e não foi sozinho.

Olho para o chão sem baixar a cabeça. Decoro o caminho e reconheço o ritmo das minhas passadas. Elas não mais se adiantam ao meu querer. Somam-se a outras pegadas. A estrada adiante continua sendo feita de gente. Sigamos, então, firmes. Daqui, escrevo-nos com a visão certa: nós sempre por nós.

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