Veny Santos

Escritor, jornalista e sociólogo, é autor de "Batida do Caos" e "Nós na Garganta".

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Fim de ano na quebrada tem sua retrospectiva contada pelas esquinas

Esses cruzamentos são parte da cultura e da história deste país, que ignora os lugares que ninguém olha

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As esquinas eram pontos de convergência. Para além da geometria das ruas, nelas se faziam os encontros. Juntava-se um pouco de um, um pouco de outro e estava formado o grupo. Podiam passar horas em silêncio, observando o movimento que se segue –segue e vai, e sendo observados. Muitas vezes, malvistos e reduzidos à visão míope do que era, em sua maioria, um quadro escapista das juventudes de quebrada. Encontrar-se para, então, desaparecerem de um meio cheio de questões complexas cujas respostas eram elaboradas antes mesmo que se compreendessem as perguntas. A antecipação do pior era regra, estratégia de sobrevivência, jogada de mestre, atitude de quem não estava de chapéu, de quem não podia vacilar.

Imagem de viela em pequena favela na zona cerealista, em São Paulo, na esquina das ruas Monsenhor Andrade e Mendes Caldeira - Juca Varella / Folhapress

Havia dias, entretanto, nos quais a esquina era só a maneira mais simples de tirar um barato com os chegados. Tirar um sarro de algum mano desavisado, ouvir um som, ficar na sua própria brisa e, ainda assim, manter-se atento ao movimento. Sempre o movimento.

Recordo-me das tantas vezes em que as esquinas foram formas vivas de uma sociologia particular, própria, cujos indivíduos se analisavam e analisavam o espaço em que viviam a partir das relações de poder estabelecidas, além de apresentarem estatísticas traduzidas numa linguagem objetiva de fácil compreensão para os locais: quantos morreram, quantos saíram do crime, quantos conseguiram um bom emprego, quantos eram pais, quantas eram mães —e, assim, entendia-se que o senso de comunidade era, inevitavelmente, o verdadeiro ponto de convergência.

A metodologia aplicada para compreender os fatos sociais que estruturavam o que se entendia por realidade era prática e surgia do pensamento tático fruto da diversidade característica dos centros suburbanos. Um paradoxo puro, contraditório e vivo, tal qual a sociedade. O cenário no qual fatores externos ao indivíduo condicionam sua vida. O contraponto à filosofia toda vez em que não se deduz algo, mas o atesta para além das subjetividades. Há, inclusive, certo momento no qual as esquinas atuam como a única —e talvez a última— forma de se compartilhar, analisar e entender tudo o que aconteceu ao longo dos meses.

O fim de ano das quebradas tem em sua essência a função de retrospectiva. Uma mistura de alívio, diversão e entendimento do mundo dentro e fora das periferias. Reencontram-se aqueles que não sucumbiram ao status quo. Sobreviventes convictos.

Para os menores, o momento permitia, finalmente, ficar até tarde na rua, desbravar a madrugada e ultrapassar o limite de horário imposto pelo "passa pra dentro" da mãe. Era a prova de que se estava finalmente crescendo. As roupas eram novas, mas compradas para durarem o próximo ano inteiro. Quem não tinha condição de aparecer com um kit inédito, ao menos usava o seu melhor.

O destaque, geralmente, estava nos pés. A cultura do "boot": o tênis que se tornava marca registrada daquela geração, o resultado do esforço dos pais para satisfazer ao menos um dos desejos de suas crias. Há muito mais ali naquelas solas do que ostentação ou consumismo. Algo que poucos —fora das esquinas— conseguirão entender. Já para os maiores, os donos de si, era ali, no encontro entre duas vias, que se trombavam as tantas vidas.

Os corres todos passavam pela esquina. O corre do trabalho, do estudo, do relacionamento, do dinheiro, do crime, da igreja, da droga, do esporte, do carro, do busão, da cidade como um todo, do proceder para todos. Diversão, entretenimento, planos, parcerias e desacertos. Bebida, fumaça, vida sem filtro, do jeito que é, do jeito que se sabe.

Lá estavam os "Bandido Fi di Crente" e o "Menino que Virou Deus", como narraram Kyan e Kayin, junto das meninas que os meninos gostam, no naipe das gêmeas Tasha e Tracie, daquelas que escreveram suas letras enquanto escreviam a própria história. Os "canela fina" pique Pedro Bala, líderes natos pela sagacidade inalcançável, esculpidos a machado, como Jorge Amado contou e Leall rimou.

De canto, braço cruzado, olhos alertas, cara fechada, estão "os mente blindada da quebrada, que age sem emoção", aqueles que sabem chegar e sair, diria MC B.O. Um cenário composto de relatos e lembrança dos que não puderam colar, do respeito aos mais velhos que passam e desejam um feliz Natal, um bom começo de ano, trocam uns abraços com os crias que serão, amanhã —se tudo der certo— os próximos tiozinhos cheios de história.

Um giro pelo quarteirão, raspar na casa dos amigos, pegar uns pedaços de torta de frango, tomar um gole de algum quente, aguentar de pé até o amanhecer e, assim, poder contar no dia seguinte que virou a noite com os parceiros. No céu, fumaça de treme terra e rojão, pouca cor, muito barulho. No chão, estouro de escapamento, pessoas em suas calçadas vendo seus vizinhos e vizinhas, desejando com fé que consigam, todos, sobreviver ao porvir.

Penso que, depois de um ano ainda em pandemia com a fome voltando à boca da população, uma máfia no comando deste cativeiro pintado de projeto de nação, com a tal democracia regida por uma minoria mirrada das ideias —mas munida de poder, covarde, representada justamente por um ser opaco, que não merece mais do que isso como menção–, será que ainda verei a esquina aqui de casa ocupada?

Tenho certeza que sim, se não for a daqui, será a da rua de trás, do bairro ao lado, da vila na sul, na norte onde tiver gente com disposição. "Esquinas com os mano sempre em frente", já disse Xis.

Faço este registro aqui porque as esquinas são parte da cultura deste país. São parte da história deste país. Os cantos contam sobre os lugares que ninguém olha. Merecem, eles, o registro nas páginas dos jornais para além do sangue escorrido ou da bala perfurante. A sociologia das esquinas é um método no qual o povo das periferias, em seus centros existenciais, elabora uma forma de se compreender a partir do que se é e do que está para além de si. Papo de visão.

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