Wilson Gomes

Professor titular da UFBA (Universidade Federal da Bahia) e autor de "Crônica de uma Tragédia Anunciada"

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Wilson Gomes

Normalizar a ultradireita é inevitável

Não se trata apenas do voto de nichos radicais, mas de metade do eleitorado

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Há um dogma que circula em ambientes progressistas: "Não normalizarás a ultradireita". É um dogma porque, aparentemente, proíbe-se até mesmo discutir a utilidade, conveniência ou razão dessa crença. Está na mesma categoria de "não existe ultradireita moderada" e "com fascista não tem conversa, só combate".

Na ilustração de traços geométricos e linhas retas, um braço direito sanfonado em tons de verde intenso, escuro e claro, ergue com a mão uma flor com raizes bem largas e fortes. A flor é uma planta carnívora, de pétalas vistosas e com a boca bem aberta, com dentes afiados e uma língua estendida para fora da boca bastante ameaçadora. O braço, que se estende da esquerda do espaço ilustrado até acima a direita on de fica a flor, está sujeito por três escadas que atuam como colunas de suas  formas.
Ariel Severino - Ariel Severino/Folhapress

Compreendo o que está em jogo. A direita radical que emergiu a partir de 2016 é perturbadora para uma cultura liberal-democrata, herdeira do Iluminismo. Mesmo com suas variações internas, há nela um bom número de teses e atitudes obscurantistas, intolerantes, avessas ao pluralismo e perigosas para minorias políticas.

Vetar a normalização dessas posições é uma tentativa de manter ativa a indignação moral, preservando o sentimento de repulsa e a convicção de que estamos diante de posições odiosas e aberrantes.

Como sou antidogmático por natureza, sugiro reexaminar se essa interdição ainda faz sentido. Em 2016 e 2018, quando Trump e Bolsonaro venceram eleições nas maiores democracias americanas, a surpresa era justificada.

Estávamos desprevenidos, aquilo não fazia sentido e não parecia condizente com o padrão civilizatório. É um pesadelo que vai passar, dizíamos. Mas não passou.

Mesmo perdendo por pouco as eleições presidenciais seguintes, o trumpismo parece mais triunfante que nunca, e o bolsonarismo não dá sinais de desaparecer. Orbán, Milei, Meloni, Le Pen, Wilders, Netanyahu, Bukele, o Vox, a AfD, o Chega são exemplos de que a direita radical vive sua primavera nas Américas e na Europa. Está em franca expansão e, mesmo quando eventualmente derrotada, mantém-se como uma força política significativa.

Menos de uma década após seu surgimento, a nova ultradireita é hoje considerada uma alternativa normal e desejada por milhões de eleitores ao redor do mundo.

Não se trata apenas do voto de nichos de radicais xenófobos, fundamentalistas, racistas ou misóginos, mas de metade do eleitorado do Brasil ou dos Estados Unidos, e de percentuais altíssimos de cadeiras nos parlamentos europeus, quando não da maioria delas. Não há noção de "nicho" que comporte tanta gente.

Cresce ou ganha em países grandes e pequenos, em jovens ou em consolidadas democracias, arrebata o voto dos jovens, é nativa digital, inova em métodos e discursos e, o que é mais inquietante, parece muito consciente de que é tudo parte de um mesmo projeto mundial. Não há como estar mais "normalizado" do que isso.

Pode-se argumentar que legitimidade é outra questão, mas isso é uma objeção fraca. Se o voto é o meio consagrado pelas democracias para legitimar pretensões políticas, e como votos livres e limpos não faltam para essas posições, parece-me irrealista e arrogante imaginar que os eleitores não as considerem democraticamente legítimas.

A ultradireita não foi legitimada por colunistas, intelectuais, jornalistas ou cientistas políticos, mas pelos eleitores de grandes democracias. Em 2024, seria tolo ignorar esse fato.

"Ora", objetam, "na democracia, voto não é tudo". Concordo, embora lembre que na democracia governam as maiorias e que o voto é o método para estabelecê-las.

Embora votos não sejam capazes de impedir que os eleitos tentem perpetuar-se no poder ou tentem desmontar as instituições democráticas uma vez empossados, votos continuam sendo as condições preliminares de legitimidade republicana.

Os votos de 1932 não autorizaram Hitler a desmantelar o parlamento alemão como instituição democrática, nem os de 2018 deram a Bolsonaro o direito a um golpe de Estado, mas abusar da legitimidade obtida não significa que o meio de legitimidade possa ser desconsiderado.

Aceitar o fato empírico e eleitoral de que a ultradireita se tornou uma posição natural para grande parte dos eleitores do mundo não impede ninguém de considerar inaceitáveis certas premissas que ela sustenta ou as atitudes que assume. Nem degrada o padrão moral de um democrata.

A divergência é a base da disputa legítima na política democrática. Negar, por outro lado, que uma posição política considerada legítima por metade dos eleitores em duas eleições consecutivas seja um adversário normal da disputa me parece um delírio irrealista.

Os eufemismos, que transformam a ultradireita em "populista", ou as hipérboles, que a transformam em "fascista", ajudam menos do que chamar as coisas pelo seu nome. Olhar nos olhos do que se enfrenta é essencial. Enterrar a cabeça na areia diante do adversário nunca foi uma política sensata.

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