Padeiros da pandemia sobrevivem à reabertura e fazem planos para o futuro

Amadores se lançam em novos projetos e provam que fazer pão não foi modismo

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São Paulo

No começo, tudo indicava que seria um daqueles modismos passageiros, com tempo de validade. Isolada e trancada em casa, longe da família e dos amigos, muita gente saiu em busca de meios para se distrair —e a produção caseira de pães caiu como uma luva.

Fazer pão exige foco, paciência e uma senhora dose de perseverança, válvula de escape ideal para a ansiedade daqueles primeiros tempos de pandemia.

A adesão foi tamanha, amplificada pelas redes sociais, que o movimento cunhou uma nova palavra: pãodemia.

Mas não é que a modinha resistiu à reabertura e se mantém em alta, mesmo em tempos de trabalho híbrido e volta às aulas presenciais?

Fornadas de Karyna Muniz saem três vezes por semana e são vendidas pelo WhatsApp - Gabriel Cabral/Folhapress

“Começou como hobby, mas virou minha terapia e uma nova carreira”, admite a consultora de negócios Karyna Muniz, 43. Intimidade com a cozinha, ela tinha de sobra: por anos, foi de dona de bufê a chef de restaurante. Mas a panificação era um terreno no qual nunca se arriscara. “Achava complexo demais, muito cheio de regras, processos e esperas”, explica.

Pois foram justamente essas características, segundo Muniz, que a atraíram durante a pandemia. “O pão me ensinou que é preciso respeitar o tempo certo das coisas, não adianta ter pressa. Desde que ele entrou na minha rotina, me reencontrei, recobrei a criatividade e não tenho mais tempo de pensar em bobagem.”

Ela já voltou ao trabalho presencial três vezes por semana, mas pretende conciliar o escritório com as fornadas daqui para frente —às quartas, sextas e sábados, seus pães de fermentação natural, incrementados com ingredientes como matchá, infusão de rosas brancas e cranberry, são vendidos a amigos, vizinhos e conhecidos. O pacote com seis unidades individuais custa de R$ 42 a R$ 54.

Karyna Muniz já foi dona de bufê e chef de restaurante, mas nunca havia se arriscado na panificação - Gabriel Cabral/Folhapress

Quem entra de cabeça no mundo da panificação artesanal parece ser abduzido para um novo universo. O funcionário público Mario Henrique de Castro, 41, tornou-se um consumidor intensivo de livros, cursos e utensílios.

Começou pelo básico, seguindo dicas de perfis especializados no Instagram, e investiu em formas, espátulas, batedeira e em uma panela de ferro para assar pão. Em pouco mais de um ano, já é capaz de reproduzir diversas receitas, incluindo brioches e pães integrais. “Presenteio os amigos e, sempre que o pão sai bonito, posto a foto”, conta, orgulhoso.

O comércio especializado não demorou a sentir os reflexos da “pãodemia”. A loja Rua do Alecrim, em Moema, que vende 15 tipos de farinhas de trigo importadas próprias para panificação, viu a procura dobrar. Nem o preço salgado, de R$ 18 por quilo em média, assustou a clientela.

“Antes da pandemia, vendíamos mais produtos para pizza. Depois, a demanda mudou”, atesta Iris Jonk, sócia da loja, que também vende pelo e-commerce (www.farinhasitalianas.com.br) e despacha 52% dos pedidos para fora do estado de São Paulo.

A paixão pelos pães também aqueceu o mercado de cursos e livros. Autor de dois títulos entre os mais populares no tema, Luiz Américo Camargo afirma que os padeiros iniciantes de 2020 têm buscado aprofundar os conhecimentos.

“Sigo ganhando seguidores nas redes, embora em ritmo menos intenso do que no ano passado. Posso dizer que as conquistas não se perderam”, diz o expert, que acumula 60,7 mil seguidores no Instagram. Cada um de seus vídeos, exibidos pelo canal do Panelinha no Youtube, registra centenas de milhares de visualizações.

Segundo Betty Kövesi, diretora da escola Wilma Kövesi de Cozinha, as turmas dos cursos de panificação mudaram de perfil de 2020 para cá.

“Antes, eram formadas por gente com experiência em cozinha que queria se aprofundar no assunto. Hoje, a prática se popularizou e pessoas sem qualquer experiência se aventuram a fazer pão. Ministramos vários cursos online em 2020, já voltamos ao formato presencial e eles continuam vendendo muito bem”, conta.

O impulso de compartilhar os resultados é uma constante entre os padeiros amadores. Bancária aposentada, Fátima Oumatu, 52, começou a fazer pão, em plena pandemia, para preencher o tempo e se distrair. “O pão francês de padaria me dava azia e comecei a pesquisar como fazer pães de fermentação natural”, lembra.

Dos cursos gratuitos, logo pulou para os conteúdos pagos —e a evolução de seus dotes vem sendo religiosamente registrada no Instagram, em perfil seguido apenas pelos amigos. Sua especialidade, ela entrega, é o pão de hambúrguer.

“Já consigo fazer sem olhar a receita e até invento as minhas. Algumas pessoas que veem as fotos me pedem para comprar meus pães, mas prefiro dar de presente”, conta.

Ex-funcionário de uma empresa de telecomunicações, Ricardo Hazure, 43, pediu demissão um mês antes do início da pandemia. Além da dificuldade para se recolocar durante a quarentena, enfrentou a perda da irmã e da sogra em um curto intervalo de tempo. O efeito terapêutico da panificação artesanal, ele conta, o ajudou a superar a fase difícil, mas acabou virando um novo projeto de vida.

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Ricardo Hazure, 43, sonha em se tornar padeiro depois de experimentar a produção artesanal na pandemia - Arquivo pessoal

Por enquanto, as fornadas de pães de fermentação natural, folhados, pães de forma e cinnamon rolls são exclusivas para amigos e familiares. Logo, porém, devem virar um empreendimento.

“O pão preencheu meu mundo, porque exige muita dedicação, algo bem diferente do que a gente vê nas padarias convencionais, que estão morrendo em função das misturas prontas e dos pães congelados. Hoje, não tenho dúvida de que quero ser padeiro um dia e montar minha padaria, para não deixar essa história morrer”, diz Hazure.

Esse foi o caminho trilhado por Renata Heimpel, 40 —o que surgiu como hobby durante a pandemia já se transformou na micropadaria caseira Dela.

“Comecei a estudar sobre pães de fermentação natural porque estava enlouquecendo na quarentena, com duas crianças estudando dentro de casa. Fiquei fascinada, comecei a postar os pães e, há três meses, oficializei o negócio.”

A cozinha do apartamento já ficou pequena para abrigar o forno industrial, a geladeira extra e a masseira recém-adquiridos. São apenas duas fornadas semanais, às quartas e sextas, que ela divulga pelo Instagram e pelo WhatsApp.

Além do pão tradicional de longa fermentação (R$ 20), Heimpel assa babkas recheadas de chocolate (R$ 40) e focaccias (R$ 35 a R$ 40), entre outras receitas.

“Tudo está acontecendo tão rápido que ainda não parei para desenhar um plano de negócios, mas preciso dele urgente para não crescer de um jeito bagunçado.”


Quer aprender também? Veja alguns caminhos:

Livros

Pão nosso: receitas caseiras com fermento natural, de Luiz Américo Camargo, editora Senac/Panelinha, 178 pág., R$ 61,40

Direto ao pão: receitas caseiras para todas as horas, de Luiz Américo Camargo, editora Senac/Panelinha, 216 pág., R$ 90

Os pães de que mais gosto, de Rogério Shimura, editora Gaia, 114 pág., R$ 95,99

Cursos

● Pão de fermentação natural para iniciantes, na escola Wilma Kövesi de Cozinha (wkcozinha.com.br), dia 29 de agosto, das 13h às 17h, R$ 320

● Focaccias artesanais de longa fermentação, no Eataly (foodpass.com.br), dia 29 de agosto, das 19h às 21h, R$ 250

Youtube

● Pão da Casa, de Rene Seifert

● Amo Pão Caseiro, de Adriano Ribeiro

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