Chefs e criadores elevam o porco ao topo do universo gastronômico

Granjas produzem 4 milhões de toneladas ao ano e querem reverter imagem ruim do passado

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São Paulo

O porco é a bola da vez –e não só porque a Casa do Porco, do chef Jefferson Rueda, acaba de ser eleita o 17º melhor restaurante do mundo pelo ranking 50 Best. Criadores nunca investiram tanto no aprimoramento na qualidade da carne suína, que já chega ao mercado em cortes chiques, como ancho, T-bone e carré francês. E os preços são um atrativo e tanto em tempos de inflação em disparada.

Nas lojas dos supermercados Pão de Açúcar, em São Paulo, o quilo do filé-mignon suíno custa R$ 26 em média, contra R$ 84 do bovino.

Boa parte dos cortes que chega às redes de varejo vem de granjas, que produzem 4 milhões de toneladas por ano e têm investido pesado para reverter a imagem ruim que a carne suína tinha no passado.

O chef Rafael Cardoso, o Rafa Bocaina, em seu sítio em Silveiras (SP), em que ele se dedica a resgatar o porco caruncho roxo - Divulgação/Thiago Couto

“Já somos exportadores de genética voltada à carne de qualidade, magra e saudável. A camada de gordura, que antigamente chegava a 10 cm, caiu para até 0,5 cm. E as doenças típicas dos porcos alimentados com restos de comida foram eliminadas”, propagandeia Marcelo Lopes, presidente da Associação Brasileira dos Criadores de Suínos (ABCS).

Criados em ambiente confinado, porcos híbridos oriundos do cruzamento de raças estrangeiras, como landrace, duroc e large white, rendem uma carne clara e ultra macia.

Na Cowpig, empresa familiar de Boituva (SP), os animais de pele quase branca comem milho, soja, cítricos e cevada descartada pela indústria cervejeira. São abatidos com 100 kg em média, mas, perto do Natal surge demanda por leitões, que os restaurantes assam inteiros para a ceia.

No dia a dia, os cortes mais procurados pelo brasileiro ainda são os tradicionais, segundo a ABCS –bisteca, costelinha e pernil, nesta ordem. Mas as geladeiras dos empórios e boutiques de carne estão recheadas de novidades.

Recém-lançada pela Cowpig, uma linha chancelada por Jimmy McManis –o Jimmy Ogro do programa Mais Você, da TV Globo– aposta em cortes que despertem o interesse do dito mercado gourmet. Entre eles estão o shoulder e o assado de tira, famosos entre churrasqueiros.

Segundo Eduardo Cocco, diretor comercial da marca, o brasileiro ainda está longe do churrasco 100% suíno, mas cada prato de sucesso com assinatura de chef famoso ajuda a conquistar mais consumidores.

“Quando o Jefferson Rueda lançou a pancetta com goiabada, notamos um aumento nas vendas de barriga suína”, lembra Cocco.

Torresmo de pancetta com goiabada é um dos destaques do menu da Casa do Porco
Torresmo de pancetta com goiabada é um dos destaques do menu da Casa do Porco - Mauro Holanda/Divulgação

Enquanto a indústria bate na tecla da criação confinada como garantia de produtos mais saudáveis, pequenos produtores artesanais vão na contramão e insistem na superioridade da carne de porcos criados soltos.

É um nicho de mercado que preza não apenas os detalhes de manejo e o bem-estar animal –ou seja, bichos que possam andar livres pelo pasto–, mas também as características da raça que dão identidade à carne.

No novo cardápio do restaurante Chou, que a chef Gabriela Barretto lança nesta semana, os dois pratos de carne suína aparecem com descrição detalhada da origem.

Servida como entrada, a rillette —carne temperada, cozida e conservada em gordura, servida com pão, mostarda e picles de rabanete— vem da Curiango, do chef Rafael Cardoso, o Rafa Bocaina.

No sítio em Silveiras (SP), ele se dedica a resgatar o porco caruncho roxo, variação do caruncho típica de sua região, no sopé da Serra da Bocaina. “As comunidades caipiras sabem que é o porco mais delicioso que existe”, puxa a brasa.

Criados soltos no pasto, com direito a música ambiente, banhos e carinho, eles têm carne escura, com alto teor de marmoreio e também de gordura subcutânea –aquela que a indústria fez questão de eliminar, mas que voltou a ser valorizada no universo da alta gastronomia.

Os dois animais que Cardoso abate por quinzena são quase inteiramente consumidos por sua charcutaria, que funciona dentro da propriedade. Mas alguns cortes chegam aos restaurantes.

Outro prato do novo cardápio do Chou, o american steak grelhado, corte transversal da paleta, vem da criação de porcos Duroc da Del Veneto. Localizada em São José dos Campos, no Vale do Paraíba, a empresa é tocada por Flávia Brunelli, quarta geração de criadores.

Os animais, cuja raça tem origem americana, rendem uma carne de coloração intermediária, entre o rosa-claro dos porcos de granja e o vermelho mais intenso dos caipiras.

Detalhe: a chef do Chou recomenda servi-lo ao ponto, derrubando mais um velho preconceito. Se no passado era regra comer carne suína esturricada, como forma de garantir sanidade, hoje vale até servi-la crua, como no tartar assinado por Jefferson Rueda.

Outra raça suína caipira que tem encantado os chefs é o Moura, de porcos grandões e peludos típicos da região Sul. Eles começaram a ser salvos da extinção em 1985, mas o projeto foi interrompido e retomado, em 2002, pelo zootecnista Marson Warpechowski, professor da Universidade Federal do Paraná.

Ele estima que já existam mais de cem pequenos criadores do Moura pelos três estados da região. Um deles é Felipe Soifer, da Casa Gralha Azul, que abraçou o projeto em 2016 com a compra de oito matrizes.

Na propriedade que era do avô, em Piraquara, na Grande Curitiba, Soifer abate 15 animais por mês. Os cortes vão para as cozinhas do Tujuína e do Cepa, entre outras, e também entram na receita da copa curada da Pirineus Embutidos Artesanais.

A identidade da carne do Moura deve-se sobretudo à alimentação. Os animais se regalam com pinhões na fase da engorda –qualquer semelhança com os porcos pretos da Península Ibérica, que comem basicamente as bolotas das castanheiras, não é mera coincidência.

Já no interior de São Paulo, em Tietê, é o caipira nilo-canastra, ou piau, que dá origem aos cortes do Frigorífico Cancian.

Diretor da empresa, Aguinaldo Cancian trabalha em parceria com oito pequenos criadores das redondezas. Seu site, porém, não apresenta os animais pelo nome caipira –a Cancian faz referência ao porco preto, uma das raças europeias que entraram na composição das brasileiras.

É dessa forma também que o restaurante Charco apresenta o prato no cardápio: o porco preto, acompanhado de vegetais na brasa, tem o sabor turbinado pelo rôti do próprio porco, com um toque de tucupi.

O porco preto do Charco é acompanhado de vegetais na brasa e tem o sabor turbinado pelo rôti do próprio porco, com um toque de tucupi - Divulgação

Segundo Cancian, a quantidade farta de gordura, que derrete fácil e umedece a carne, é o melhor cartão de visitas de seus produtos. Em novembro, entra em linha o guanciale, corte da bochecha curada, ingrediente principal do macarrão à carbonara.

De acordo com Marson Warpechowski, o Brasil ainda tem muitos porcos caipiras a salvar do esquecimento, já que as raças costumam dar origem a variações regionais que expressam o terroir de cada lugar.

“Nunca houve, no país, um movimento de valorização dos porcos de raças brasileiras, como a Espanha e Portugal fizeram com o porco preto. O interesse maior sempre foi pelo porco industrial e, como as iniciativas são pessoais, correm o risco de não ter continuidade”, teme.

A despeito disso, o porco segue como alimento querido pelo povo brasileiro, o que vem de longe. Segundo o sociólogo Carlos Alberto Dória, coautor de "A Culinária Caipira da Paulistânia" (editora Fósforo), era a carne mais estimada no período colonial —tanto que os primeiros animais europeus foram trazidos já no século 16.

Os caipiras nada mais são do que o resultado da cruza de várias raças trazidas pelos colonizadores, cada uma aclimatada a uma região.

Durante séculos, porco bom era porco gordo, com bastante banha que pudesse ser usada como gordura no preparo dos alimentos, para conservar carnes e até para acender lampiões.

A história começou a mudar em 1958, com a criação da ABCS e o foco no desenvolvimento genético de animais mais magros. “A introdução do óleo vegetal colaborou para mudar o interesse do cliente”, justifica o presidente da entidade.

Com o tempo, como revela Warpechowski, até a palavra porco ganhou conotação negativa. “Em 2016, organizamos um evento chamado Semana do Porco, e uma entidade de pesquisa se recusou a participar por causa do nome. Alegava que o certo era usar a palavra suíno”, acha graça.

Quem poderia imaginar que o porco, apenas cinco anos depois, teria projeção internacional –e apresentado com nome de batismo?

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