Famoso em 'Round 6', biscoito dalgoná desperta saudade em imigrantes do Bom Retiro

Saiba a história do doce da série da Netflix, feito de açúcar e bicarbonato

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São Paulo

Ao evocar vários jogos infantis coreanos, a série “Round 6” vem causando uma onda de saudosismo em uma geração de imigrantes que aportou no bairro do Bom Retiro, em São Paulo, nas últimas décadas do século passado.

Mas nenhum daqueles jogos trouxe tanta saudade quanto o segundo desafio que aparece no programa da Netflix.

O coreano Nick Farewell comia o doce usado em uma das provas da série 'Round 6', da Netflix, quando era criança - Adriano Vizoni/Folhapress

Nele, conhecemos um biscoitinho feito de açúcar (e uma pitada de bicarbonato) no qual se pressiona uma forminha (que pode trazer formatos de diversos objetos) para marcar o doce quando ele ainda está quente. Após esfriar, temos um biscoito redondo com uma estrela, triângulo ou um peixe marcado no centro.

Na série “Round 6”, que se tornou recentemente o seriado mais visto da história da Netflix (111 milhões de contas em 25 dias), os participantes do jogo mortal precisam destacar as bordas da bolacha e manter o desenho central intacto, sob pena de morrer com um tiro na cabeça.

Pois acontecia exatamente assim na Coreia entre os anos 1960 e 1980 —a diferença era que, se a criança perdesse, não era assassinada a sangue frio. Ufa.

“Eu jogava nos anos 1980”, conta o escritor Nick Farewell, que veio com a família de Seul para o Brasil em 1985, aos 13 anos.

“Era uma brincadeira que jogávamos em tendinhas na frente das escolas. Mas eu nunca consegui destacar a bolacha, só perdia”, lamenta.

O coreano Nick Farewell reproduz uma das cenas de 'Round 6', da Netflix, em que o participante dos jogos lambe o dalgoná - Adriano Vizoni/Folhapress

Farewell explica a dinâmica do jogo: “A gente pagava 50 won [R$ 0,25 centavos de hoje] pelo doce. Se conseguisse destacar sem quebrar o centro, ganhava outro doce de graça”.

Naquela época, o quitute/jogo se chamava “popki”, coreano para “destacar alguma coisa”. Mas os popkis caíram em desgraça em meados dos anos 1980, quando a Coreia começou a despontar economicamente como um tigre asiático.

“Com a proximidade das Olimpíadas de Seul, em 1988, as autoridades sanitárias começaram a perseguir as barraquinhas que faziam comida nas ruas e os popkis sumiram”, conta o escritor e especialista em culinária João Son, que emigrou para o Brasil com a família aos oito, em 1985.

No entanto, quando essa geração cresceu, já no século 21, o saudosismo (olha ele de novo) fez com que o doce fosse ressuscitado. Há anos ele está de volta às ruas daquele país, agora com o nome de “dalgoná”, que significa “algo doce”.

“Recentemente, o dalgoná estava custando o equivalente a um ou dois dólares lá na Coreia. Só que, com o sucesso da série, hoje está sendo vendido por 7.000 won, o que dá seis dólares [R$ 33]”, conta Son.

A pedido da Folha, ele e sua mulher, Rose Shin (no Brasil desde 1987, quando tinha 12 anos), prepararam alguns dalgonás nesta semana, em um espaço cultural no Bom Retiro, a Associação Brasileira de Dança Tradicional Coreana.

A presidente da associação, Sara Hwa Young Lee, 68, veio ao Brasil em 1977, quando tinha 24 anos. Ela também comia e brincava com os popkis na porta da escola na infância. “Na época, custavam apenas 1 won, coisa de um centavo ou menos. Meu pai me dava o dinheiro para eu comprá-los”, lembra.

“Eu ganhava sempre quando era triângulo. Mas a cruz nunca ganhei. A Coreia era muito pobre nos anos 1960 e a criançada adorava açúcar, artigo raro na época”, conta Sara.

João Son diz que o açúcar era um artigo praticamente inexistente por lá até a Guerra da Coreia (1950-1953), quando os americanos trouxeram muitos quilos do item na bagagem.

A primeira saca produzida na Coreia data justamente de 1953, e “a primeira empresa a produzir era da família que mais tarde viria a fundar a Samsumg”, conta ele.

Para fazer um dalgoná, é desejável ter um kit específico, que compreende uma concha, um esmagador e as várias forminhas. Esse kit está à venda em lojinhas na Coreia por cerca de 10.000 won, mas Son acredita que em poucas semanas ele estará disponível também nas lojinhas do Bom Retiro, dado o sucesso da série por aqui.

Ele ensina a receita: duas colheres de sobremesa de açúcar na concha, que vai ao fogo, mas não de forma ininterrupta.

“É preciso tirar a concha do fogo e ir controlando para que o açúcar não queime. É como cocada ou pé de moleque”, diz ele, que está escrevendo seu terceiro livro, o primeiro em português, apenas com receitas tradicionais coreanas.

“Quando o açúcar derreter, vai uma pitadinha de bicarbonato de sódio, para crescer. Após uns seis ou sete minutos, coloque a massa em um papel vegetal e amasse para que ela fique plana. Por fim, aperte a forminha sem que ela alcance o papel do outro lado, ou o desenho vai se destacar das bordas.”

Há alguns meses, João e Rose fizeram alguns dalgonás para apresentar o doce aos seus filhos gêmeos, Lucca e Mikaela, hoje com cino anos. Eles não tinham as forminhas, por isso grudaram as bolachinhas em pauzinho, fazendo pirulitos. “Eles não gostaram”, diverte-se Son. Pelo jeito, o saudosismo é um ingrediente indispensável dessa receita.

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