Vivendo sob um regime no qual a permissão de um homem é necessária em muitas situações, a mulher no Qatar encontra pouco espaço para se manifestar. Ao longo da história do país, no entanto, a cozinha se tornou uma ferramenta de empoderamento para essas mulheres —nela, expressam criatividade, empreendem negócios de sucesso e deixam suas marcas pessoais.
Shams Al Qassab, primeira mulher comerciante da história do país, costuma afirmar que inventou alguns dos pratos tradicionais do Qatar. Com receitas de longa data, esperou anos até conquistar sua loja no Souq Waqif, o principal mercado de Doha, em 2004.
Al Qassab sempre quis alugar uma loja para vender seus temperos, mas não havia quem topasse fechar negócio. Ela conta que foi só nos anos 1980, quando a xeca Mozah bint Nasser al-Missned diminuiu as barreiras para as mulheres, que as coisas começaram a mudar.
Hoje, ela vende 480 tipos de temperos, misturas secretas com propriedades medicinais, orgânicas e saborosas. Ao lado da loja, seu restaurante serve pratos que carregam memórias com toques únicos de seus temperos mirabolantes.
Outras mulheres também conseguiram fazer da cozinha um negócio de sucesso no Qatar. A chef Aisha Al Tamimi aprendeu a cozinhar para cuidar de sua família quando se casou, aos 15 anos. Com o tempo, abriu um restaurante e acabou se tornando apresentadora de TV, além de professora na The Cooking Academy, escola criada por seu filho em sua homenagem, em 2019.
Noor Al Mazroei também cozinhava para a família quando se tornou influencer de gastronomia, estourando no Instagram com suas receitas típicas com pegada saudável.
Layla Al-Dorani, filha de mãe americana e CEO da Raw Middle East, enxergou com olhar ocidental a falta de preocupação com ingredientes saudáveis no país de seu pai. Determinada a mudar esse cenário, fundou três premiadas empresas de comida natural e vegana, e foi nomeada uma das 200 Mulheres Árabes mais Poderosas de 2014 pela Forbes Middle East.
Para a ONG internacional Human Rights Watch, não há dúvidas de que as mulheres no Qatar quebraram barreiras e alcançaram um progresso significativo, mas elas ainda precisam navegar pelas regras de tutela masculina impostas pelo Estado, que limitam sua capacidade de viver uma vida plena, produtiva e independente.
O cenário do país fez com que redes internacionais como o McDonald's abrissem mais vagas de trabalho para mulheres. Elas somam 40% das vagas da rede no Qatar, e os planos da marca são de que este número chegue a 50%.
Essas redes fizeram sucesso no país nos últimos anos também por conquistarem mulheres —elas puderam matar a vontade de comer hambúrguer nos drive-thrus e deliveries, uma vez que não possuem o costume de comer em público.
Segundo Rachel Morris, escritora inglesa especialista em gastronomia e moradora de Doha desde 2007, a gastronomia do Qatar passou por diferentes períodos. "As mulheres do Qatar são muito fortes nas esferas familiares e comunitárias. Há muito tempo, antes de sua história de comércio e de pérolas, a comida era ditada pelo clima", conta.
"Mais tarde, influenciada pelo entreposto comercial que se tornou o país, a culinária ganhou novos sabores, com as muitas especiarias como cominho vindo da Índia, açafrão do Irã e legumes do Levante."
Embora possua algumas semelhanças, a culinária no Qatar se diferencia da levantina ou armênia —aquela que, no Brasil, é conhecida de maneira reducionista como "árabe". As semelhanças residem no uso de especiarias, mas a culinária tradicional do Qatar se sobressai pelo uso de carnes e espécies de mingau.
"A culinária no Qatar se deve à escassez de ingredientes nas gerações anteriores, com o uso de carnes, peixes e grãos, diferente da culinária levantina, que depende muito de vegetais frescos e ervas", ensina Morris.
Muitas das receitas tradicionais do país são feitas com carnes ou peixes servidos com mingaus de grãos, repletos de especiarias. É o caso do machboos, um dos principais pratos nacionais, espécie de galinhada que leva arroz cozido com especiarias e algum tipo de carne —seja do próprio frango, ou de animais como cordeiro, camarão, camelo ou peixe.
O mathruba também é feito com arroz, porém batido com cardamomo, leite, manteiga e carnes até formar, de novo, um mingau. O luqaimat é um doce tradicionalmente feito durante o Ramadã, com manteiga, leite, farinha, açúcar, açafrão e cardamomo, transformados em pequenos pastéis fritos e envoltos em mel.
O balaleet, um prato agridoce, normalmente servido de café da manhã ou como sobremesa, leva aletria, açúcar, água de rosas, cardamomo, açafrão e uma omelete por cima de tudo.
Frutos do mar, peixes e cordeiro são servidos nas fartas refeições compartilhadas, temperadas com lommi (limão negro), açafrão e cardamomo. A carne de porco e o álcool estão proibidos.
As tâmaras, por sua vez, são abundantes e simbolizam hospitalidade —devem ser comidas em números ímpares, segundo costume do islã—, e aparecem muitas vezes junto ao ritual do café árabe, conduzido apenas por homens.
Hoje, a cena gastronômica do Qatar se tornou mais cosmopolita. "Quando cheguei há 15 anos, os restaurantes eram bem diferentes. Eram principalmente buffets de hotéis, casas árabes e comida do sul da Ásia", lembra Rachel Morris.
"Agora, você pode jantar ao redor do mundo em um dia, Qatar, Europa, Ásia. Temos algumas das marcas mais reconhecidas do mundo aqui."
É o caso de grandes grifes como Alain Ducasse, Gastón Acurio e Wolfgang Puck.
Embora cada vez mais internacional, o Qatar é desafiador e complexo para quem deseja empreender. Não à toa, o chef Gordon Ramsey decidiu fechar o The Maze, seu restaurante em Doha, por conta das regras do local.
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