Cozinha judaica de São Paulo se renova sem deixar de lado a tradição

Nas mãos da nova geração, receitas clássicas ganham toque contemporâneo e se popularizam

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São Paulo

Nos guias de restaurantes paulistanos, a seção de cozinha judaica nunca foi das mais extensas e andava meio parada no tempo. Não deixa de ser um contrassenso, considerando que a comunidade é numerosa —65 mil judeus vivem na capital paulista, segundo a Federação Israelita do Estado de São Paulo.

Aos poucos, porém, suas ricas tradições culinárias estão voltando a ser notícia, a começar pela festejada reabertura da Adi Shoshi Delishop, agora com outro nome na tabuleta: Shoshana Delishop.

Língua da Shoshi, da Shoshana Delishop - Lais Acsa/Divulgação

O último restaurante de cozinha judaica do Bom Retiro, inaugurado em 1991 pelo casal Adi e Shoshana Baruch, estava prestes a encerrar as atividades quando foi comprado por um grupo de clientes, inconformados com o fechamento.

Reaberto oficialmente em 1º de setembro, agora tem menu assinado pela chef e pesquisadora Clarice Reichstul, que usou como base as receitas da fundadora. No dia a dia, Graziela Tavares, sócia do Bar Sabiá, na Vila Madalena, chefia a cozinha.

Andrea Kaufmann, que já comandou o AK Delicatessen e o AK Vila, também está de volta. Ela acaba de chegar de Portugal e assina o novo menu judaico da Casa Manioca, braço de eventos do Grupo Maní. São pratos para levar, que podem ser encomendados até esta terça (20), para entrega no Rosh Hashaná, o Ano Novo judaico, entre 25 e 27 de setembro.

A Z Deli Delicatessen, em funcionamento desde 1981 na Alameda Lorena, também está em processo de renovação —herdeiro do restaurante fundado por sua avó, Rosa, e a tia-avó, Zenaide, Julio Raw planeja apresentar uma versão rejuvenescida da casa até o fim do ano.

A ideia é manter o DNA ousado da família. "Na época em que os restaurantes se concentravam no Bom Retiro, elas furaram a bolha da comunidade. Abriram a casa no Jardim Paulista e apresentaram essa culinária a quem não é judeu."

Shoshana, Andrea e a família Raw ficaram famosas pelas receitas da cozinha ashkenazim, dos judeus que se estabeleceram na Europa Central e Oriental. São pratos que o paulistano associa mais facilmente à cozinha judaica, como o guefilte fish (bolinho de peixe), os varenikes (raviólis de batata) e kneidlach (sopa de bolinhos de farinha de matzá).

Mas há uma outra faceta da culinária judaica, a sefaradi, que também anda se espalhando pela cidade. É ela que aparece nos menus de estabelecimentos jovens inaugurados de 2021 para cá, como Shuk e Bubbeleh Delishop —e ainda demanda muita explicação à clientela, que vê pastas como hommus, ou pratos à base de grãos e carne de cordeiro, e os liga imediatamente à culinária árabe.

Tradicionalmente, essas duas cozinhas judaicas não se misturavam —até mesmo casamentos entre os dois grupos eram proibidos. Para entender a razão de tamanhas diferenças à mesa, é fundamental conhecer a origem de cada uma delas.

"Vindos de uma região fria, os ashkenazim se utilizavam de gordura de galinha, cebola, alho, repolho, cenoura, beterraba e batata, além de peixes defumados e salgados, como a carpa e o arenque", explica Marcia Algranti, autora de "Cozinha Judaica – 5.000 Anos de Histórias e Gastronomia" (Record).

Raiz forte, picles e pepinos em conserva acompanham várias preparações, emenda Algranti. Os sabores são agridoces, pela combinação de vinagre, suco de limão, sal e açúcar (ou mel).

Já os sefaradis se dispersaram por todo o Mediterrâneo, em regiões férteis de clima ameno, onde frutas, ervas, grãos e especiarias em abundância deram origem a "uma das mais saborosas e características cozinhas do mundo, muito mais variada do que a dos judeus que enfrentavam rigorosos invernos do Leste da Europa", segundo a autora.

Não por acaso, são receitas que também aparecem na culinária sírio-libanesa, que tanto se popularizou em São Paulo —daí a confusão.

Sócios no Shuk, Suzana Goldfarb, de família judaica, e Mauro Brosso, de ascendência síria, já se acostumaram a dar aulas à clientela.

"Até os judeus que vivem aqui conhecem pouco sobre essa cozinha judaica do Oriente Médio, já que as comunidades que migraram para Brasil e Argentina vieram basicamente do leste europeu", diz Mauro.

Filha de um judeu russo que sobreviveu ao holocausto, Suzana cresceu comendo comida ashkenazim. Foi só na adolescência, quando viveu em Israel, que ela conheceu a outra faceta da cozinha judaica. "Essas receitas puxadas para o Oriente Médio eram o que a gente encontrava na comida de rua. E o que trouxemos para o Shuk."

Mesma origem tem a cozinha da Bubbeleh Delishop. Netos de judeus que trocaram Jerusalém pela Grécia antes de chegar ao Brasil, os irmãos Marcelo e Shemuel Shoel também viveram em Israel na adolescência. Lá, aprenderam a comer sanduíches como shawarma e arais, especialidades da casa.

Entre as novas gerações de cozinheiros judeus, o apego às tradições ganha outro significado. Longe de ser uma camisa de força, reverencia as origens enquanto flerta com novas técnicas e toques autorais.

No menu de Rosh Hashaná da Casa Manioca, pratos da cozinha ashkenazim convivem em paz com o receituário sefaradi, sob toques pessoais de Andrea Kaufmann. Tem pastrami de língua e haddock defumado, e também hommus e magret de pato com romã.

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Menu para o Rosh Hashaná da Casa Manioca - Divulgação

"Meu guefilte fish leva clara em neve, para ficar fofinho, e peixe de mar além da carpa, porque peixes de rio têm sabor muito terroso. Sei que sou execrada pelas avós judias", ela acha graça. "Um dia, ainda faço uma camiseta com a frase ‘Não Sou Sua Avó’."

Na Shoshana Delishop, clássicos da fundadora continuam lá, como a língua da Shoshi, servida com varenikes e salada. Mas Clarice Reichstul também promoveu mudanças, sabendo que enfrentaria resistência dos mais conservadores. "Tenho apego à minha história, mas estou no Brasil de 2022. Não precisamos ficar parados no tempo, posso ter um olhar mais contemporâneo", pondera.

A própria Shoshana, que continua morando em cima do restaurante e participou como conselheira do processo de renovação do menu, confessa que nunca foi presa demais às tradições —talvez por isso sua casa tenha conquistado tantos clientes fora da comunidade.

"Sempre dominei as duas cozinhas, a ashkenazim e a sefaradi, porque o paulistano gosta. Servia guefilte fish e também berinjela recheada com ricota."

O processo de renovação da cozinha judaica paulistana mantém o respeito às restrições mais severas: carne suína não passa perto, carne e leite jamais se misturam. Mas se distancia da formalidade quando o assunto é atendimento.

Na nova Shoshana Delishop, as noites de sexta-feira foram reservadas à happy hour, ironicamente batizada de Boteco do Shabat, com decoração e comidinhas inspirados no ritual judaico. Segundo Benjamin Seroussi, novo sócio do lugar, judeus e não judeus de várias partes da cidade têm se encontrado lá.

"Ainda é um experimento, o cardápio está se desenhando com roll-mops [rolinho de arenque e picles], canapé de língua, guefilte fish frito... Falta roteirizar melhor a noite para trazer um pouco mais de solenidade, de música, de festa, mas chegamos lá."

Julio Raw também promete muita novidade na nova encarnação da Z Deli. "Nunca vou deixar de servir comida judaica e quero reforçar a cara de deli antiga, mas planejo passar a abrir à noite e explorar até o café da manhã", anuncia. "Estou no passo de rejuvenescer, achando que tudo é possível."


Bubbeleh Delishop

R. Francisco Leitão, 77, Pinheiros.

Casa Manioca

www.maniocapralevar.com.br

Shoshana Delishop

R. Correia de Melo, 206, Bom Retiro.

Shuk

R. Ferreira de Araújo, 385, Pinheiros.

Z Deli Delicatessen

Al. Lorena, 1689, Jardim Paulista.

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