Descrição de chapéu Financial Times receitas

Do carbonara ao tiramisu, receitas clássicas italianas são invenções recentes

No país, maioria das pessoas não tinha ouvido falar de pizza antes da década de 1950, afirma autor

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Marianna Giusti
Financial Times

Parma é uma cidade silenciosa, à noite. O homem sentado à minha frente parece paranoico quanto à possibilidade de que alguém vá ouvir nossa conversa. "Eles me odeiam, aqui", ele explica, abafando a voz.

Depois, lança um olhar para trás, mas a única outra pessoa presente na osteria é uma garçonete que ficou sem alguma coisa para fazer depois de servir nosso ossobuco bottoncini. O aroma de medulas ósseas assadas flutua da mesa para as nossas narinas. Ao longe, no rádio, se ouve a cover de "Valerie" gravada por Amy Winehouse.

"Posso falar mal deles?", meu interlocutor pergunta. Respondo que sim. Afinal, ele não foi convidado para este jantar a fim de expor alguma fraude empresarial. Veio para me contar a verdade sobre o queijo parmesão.

Espaguete alla carbonara do novo restaurante Mio Pasta & Pizza, em São Paulo
Espaguete alla carbonara do novo restaurante Mio Pasta & Pizza, em São Paulo - Raul da Mota/Divulgação

O homem com quem estou jantando é Alberto Grandi, um acadêmico que se tornou celebridade relutante por causa de um podcast, e é jurado da Copa do Mundo de Tiramisu que acontecerá este ano em Treviso. ("É algo que eu não perderia, mesmo que tivesse um convite para jantar com o papa", ele me disse.)

Grandi dedicou sua carreira a desmascarar os mitos em torno da comida italiana; esta é a primeira vez que ele fala à imprensa estrangeira. Quando o seu livro de 2018, "Denominazione di Origine Inventata" [denominação de origem inventada], se tornou sucesso de vendas na Itália, Daniele Soffiati, um amigo de Grandi, sugeriu que os dois criassem um podcast sobre o tema.

Desde o seu lançamento, em 2021, o programa deles, em italiano, chamado Doi, em referência ao título do livro, já realizou três temporadas e registra mais de um milhão de downloads. A especialidade de Grandi é fazer afirmações ousadas sobre os alimentos essenciais de seu país: ele declara que a maioria dos italianos não tinha ouvido falar de pizza antes da década de 1950, por exemplo, ou que o macarrão à carbonara é uma receita americana.

Muitos "clássicos" italianos, do panetone ao tiramisu, são invenções relativamente recentes, argumenta. Algumas das afirmações do Doi talvez não sejam novidade para os iniciados da gastronomia, mas a maioria se baseia em descobertas do próprio Grandi, desenvolvidas em parte com base em literatura acadêmica existente.

O talento dele está em tomar a investigação acadêmica e torná-la digerível. E sua missão é abalar as bases sobre as quais nós, italianos, construímos nossa famosa, e famosamente inflexível, cultura culinária —uma cena alimentar em que o cappuccino não deve ser consumido depois do meio-dia e o tagliatelle precisa ter uma largura de exatamente sete milímetros.

Grandi se tornou impopular em alguns quadrantes ao criticar o poderoso sector alimentar e de bebidas da Itália, que, segundo algumas estimativas, responde por um quarto do Produto Interno Bruto do país.

No podcast, ele brinca que só deveria sair de casa "acompanhado de seguranças pessoais, como Salman Rushdie". Em 2019, o embaixador italiano na Turquia repreendeu Grandi em uma conferência em Ancara depois de o pesquisador ter ridicularizado as 800 denominações protegidas da Itália, produtos cuja qualidade é reconhecida pela União Europeia como indissociavelmente ligada ao país.

No festival literário Les Mots, em Aosta, Grandi foi criticado por um palestrante romano que, ofendido com as afirmações de Grandi sobre o macarrão à carbonara, "me xingou de todos os palavrões", diante de uma audiência ao vivo estupefata.

Panetones do restaurante italiano Mondo Gastronomico, do chef Salvatore Loi
Panetones do restaurante italiano Mondo Gastronomico, do chef Salvatore Loi - Leo Feltran/Divulgação

Como italiana que vive no exterior, quando ouço um perito em alimentos dizer que nossa culinária nacional, com a sua reputação de tradição e autenticidade, em lugar disso se baseia em mentiras, a sensação é a de ser informada sobre um segredo familiar vergonhoso de que sempre suspeitei.

Sempre detestei os exageros espalhados sobre a comida italiana, quer viessem de amigos estrangeiros excessivamente passionais (um exemplo é um amigo nova-iorquino cuja especialidade são receitas regionais muito raras de massa italianas), quer de compatriotas embaraçosamente pedantes (como o meu amigo napolitano que se recusa a tocar nos tomates frescos vendidos no Reino Unido).

Achei divertido, mas fiquei perplexa, durante a fase de compras frenéticas causadas pelo pânico nos primeiros lockdowns da Covid-19, ao descobrir que as prateleiras dos supermercados italianos estravam praticamente vazias; só sobrou o penne liso, considerado pelos italianos com um macarrão de baixa qualidade.

"É tudo uma questão de identidade", me diz Grandi entre garfadas de ossobuco bottoncini. Ele é devoto de Eric Hobsbawm, o historiador marxista britânico que escreveu sobre aquilo que definiu como a invenção da tradição. "Quando uma comunidade se vê privada do seu senso de identidade, por causa de qualquer choque histórico ou fratura com relação ao passado, inventa tradições para agir como mitos fundadores", diz Grandi.

De cerca de 1958 a 1963, durante o "boom" econômico que se seguiu aos anos de pobreza da Segunda Guerra Mundial, a Itália registrou o mesmo tipo de progresso que o Reino Unido havia testemunhado ao longo de um século, durante a Revolução Industrial, diz Grandi.

Tiramisu do restaurante Modern Mamma Osteria, em São Paulo
Tiramisu do restaurante Modern Mamma Osteria, em São Paulo - Divulgação

"Em muito pouco tempo, italianos que tinham vivido com o pão racionado passaram a desfrutar de abundância. Era um nível de prosperidade completamente inesperado, e para eles, na época, parecia não ter fim". O país precisava de uma identidade que o ajudasse a esquecer as suas lutas passadas, enquanto aqueles que tinham emigrado para a América precisavam de mitos que dignificassem as suas origens humildes.

O panetone é um exemplo claro disso. Antes do século 20, o panetone era um pão fino e duro recheado com um punhado de passas de uva. Só era comido pelos pobres e não tinha ligação com o Natal.

O panetone tal como o conhecemos hoje é uma invenção industrial. Na década de 1920, Angelo Motta, da marca de produtos alimentares Motta, introduziu uma nova receita para a massa de panetone e começou a "tradição" de fazê-lo em forma de cúpula.

Depois, na década de 1970, quando começaram a enfrentar concorrência crescente dos supermercados, as padarias independentes começaram a fazer panetone em forma de cúpula. Como Grandi escreve em seu livro, "depois de uma bizarra viagem invertida, o panetone por fim veio a ser o que nunca tinha sido no passado: um produto artesanal".

O tiramisu é outro exemplo. Suas origens recentes são disfarçadas por diversas histórias fantasiosas. A sobremesa apareceu pela primeira vez em livros de culinária na década de 1980. O seu ingrediente fundamental, o mascarpone, não era fácil de encontrar fora de Milão antes da década de 1960, e os biscoitos com infusão de café que separam as camadas são Pavesini, um petisco de supermercado lançado em 1948. "Em um país normal", diz Grandi com um sorriso, "ninguém se incomodaria com onde [e quando] um bolo foi inventado".

Queijo parmesão
Queijo parmesão - Robson Ventura/Folhapress

O parmesão, ele diz, é notavelmente antigo, e existe há cerca de um milênio. Mas antes da década de 1960, as rodas de queijo parmesão pesavam apenas cerca de 10 quilos (em oposição às pesadas rodas de 40 quilos que conhecemos hoje), e vinham envoltas por uma espessa crosta negra. A sua textura era mais gordurosa e mais macia do que é hoje em dia.

"Há quem diga que essa variedade de queijo, como sinal de qualidade, precisava verter uma gota de leite quando prensado", diz Grandi. "Seu correspondente exato nos tempos modernos é o parmesão de Wisconsin".

Ele acredita que imigrantes italianos do início do século 20, provavelmente da região do Pó, ao norte de Parma, começaram a produzir o queijo no Wisconsin e, ao contrário dos produtores de queijo em sua Parma natal, a receita deles nunca evoluiu. Assim, enquanto o parmesão italiano se tornou, ao longo dos anos, um queijo duro e com crosta clara, produzido na forma de enormes rodas, o parmesão do Wisconsin se manteve fiel ao original.

Na história da comida italiana moderna, muitos caminhos levam à América. A migração em massa da Itália para os Estados Unidos produziu culturas gastronômicas tão profundamente entrelaçadas que tentar separar uma da outra é impossível. "A cozinha italiana na verdade é mais americana do que italiana", diz Grandi, sem hesitar.

A pizza é um excelente exemplo. "Discos de massa cobertos por ingredientes", como os define Grandi, foram difundidos durante séculos por todo o Mediterrâneo: piada, pida, pita, pitta, pizza. Mas em 1943, quando soldados ítalo-americanos foram enviados para a Sicília e depois para a península italiana, escreveram para casa contando, com incredulidade, que não havia pizzarias.

Antes da guerra, me diz Grandi, a pizza só era encontrada em algumas cidades do sul de Itália, onde era feita e comida nas ruas pelas classes mais baixas. As suas pesquisas sugerem que o primeiro restaurante criado especificamente para servir pizzas abriu em 1911, não na Itália, mas em Nova York. "Para o meu pai, na década de 1970, a pizza era tão exótica quanto o sushi é hoje, para nós", acrescenta o pesquisador.

Quando, depois de meu encontro com Grandi, fui visitar a minha avó, Fiorella Tazzini, 88, em sua casa em Massa, na Toscana, ela estava muito bem arrumada, como sempre, com uma camisa engomada, cor de creme, e um casaco preto. Nonna Fiore, como os seus netos a chamam, nos serviu um chá de ervas e me deu um prato de bolachas.

O chá exalava o aroma calmante de bálsamo de limão. Nós nos acomodamos à mesa da mesma cozinha impecável, com as suas cortinas de padrão geométrico dos anos 1960, na qual, quando eu era criança, ela por vezes me servia refeições congeladas, com uma piscada e um pedido: "Não diga nada à sua mãe!".

La Braciera, pizza italiana
La Braciera, pizza italiana - Neuton Araujo/Divulgação

"Eu me lembro da primeira pizzaria que vi", ela diz. "Eu devia ter 19 ou 20 anos, em Viareggio, a meia hora de casa. A primeira vez que vi uma muçarela foi ainda mais tarde, deve ter sido na década de 1960; sua mãe já tinha nascido. Foi quando abriram um supermercado aqui."

A muçarela vem do sul de Itália, a centenas de quilômetros de distância. Para saber mais, telefono para a tia-avó siciliana de um amigo. Aos 95 anos, e um pouco surda, Serafina Cerami atende o telefone imediatamente. "Comíamos muita muçarela na Sicília antes da guerra!", ela grita do outro lado da linha. Tal como a pizza, a muçarela rapidamente ganhou fama mundial, depois de passar pelo funil da emigração em massa do sul italiano para os Estados Unidos.

Comparando as recordações de Cerami com as de minha avó, fica evidente que os elevados pratos "dominicais" da Sicília (berinjela à parmigiana, cannoli, massa com "le sarde") foram os que se generalizaram, graças à contribuição do sul da Itália para as diversas Little Italies (região em que se estabeleceu a colônia italiana) dos Estados Unidos.

Minha avó, por outro lado, cresceu comendo tordelli "alla massese" (um tipo de tortelli grande com recheio de carne, cozinhado em molho de tomate) e cappelletti en brodo (tortellis frescos em caldo de galinha), pratos que são quase inteiramente desconhecidos fora de sua região.

Queijo muçarela utilizado no preparo das pizzas
Queijo muçarela utilizado no preparo das pizzas - Bruno Santos/ Folhapress

Tanto Cerami, na Sicília, quanto minha avó, na Toscana, se lembram de comer muitos feijões e batatas — ingredientes que tipicamente não são associados à culinária italiana—, antes da guerra. Mas uma apreciação crescente da culinária das regiões mais pobres do país, no Reino Unido e nos Estados Unidos, reabilitou grande parte da "cucina povera", como o "gnocco fritto" da região da Emília, o "pappa al pomodoro" da Toscana e a polenta do norte.

Para Grandi, a história do macarrão à carbonara encapsula perfeitamente a ideia de Hobsbawm sobre a "invenção da tradição". Para lançar alguma luz sobre esse favorito nacional, entro em contato com Bernardino Moroni, 97, avô de um amigo romano. "Só comíamos massa aos domingos", ele diz, em uma conversa por vídeo de sua casa em Morlupo, na província de Roma. Suas refeições de infância eram principalmente minestra, feijão e legumes da horta da família, explica Moroni. Quando lhe pergunto sobre o macarrão à carbonara, um suposto alimento básico da culinária romana, ele desvia os olhos da câmara.

"Talvez uma vez por ano comêssemos macarrão amatriciana [uma receita à base de tomate com bacon], quando podíamos nos ao luxo de matar um porco. Mas eu nunca tinha ouvido falar de carbonara antes da guerra".

Isso porque, como diz Luca Cesari, um historiador da alimentação, autor de "A Brief History of Pasta", o macarrão à carbonara é "um prato americano nascido na Itália" e não apareceu até a Segunda Guerra Mundial. A história com que a maioria dos especialistas concorda é que um chef italiano, Renato Gualandi, fez o prato pela primeira vez em 1944, em um jantar em Riccione para o exército americano e outros convidados, entre os quais [o futuro primeiro-ministro britânico] Harold Macmillan.

"Os americanos tinham um bacon fabuloso, creme de ótima qualidade, e gemas de ovos em pó", recordou Gualandi, anos depois. Cesari rejeita os mitos de que o macarrão à carbonara era o alimento dos carvoeiros italianos do século 18, e o define como "não histórico".

Para os italianos nascidos depois dos anos do "boom", o macarrão à carbonara tem um conjunto inalterável de ingredientes: papada de porco, queijo pecorino romano, ovos e pimenta. Mas as receitas iniciais são surpreendentemente variadas. A mais antiga foi impressa em Chicago em 1952 e levava bacon italiano, e não papada de porco. As receitas italianas da mesma época incluem de tudo, de queijo gruyère (1954, na revista La Cucina Italiana) ao "prosciutto, e cogumelos cortados em fatias finas" (1958, restaurante Tre Scalini de Roma). A papada de porco só veio a substituir o bacon recentemente, na década de 1990.

Mas é o macarrão à carbonara que desperta alguns dos momentos de dogmatismo culinário mais extremo. Muitos italianos aprendem a cozinhá-lo em casa, hoje, de acordo com um conjunto de regras que coloca a receita no contexto da "família de massas romana", em companhia do cacio e pepe, gricia e macarrão amatriciana.

A ideia é que a adição ou subtração de ingredientes específicos transforma um prato clássico de massa em outro, e qualquer desvio com relação às regras é assunto de interesse nacional. Em 2015, a cidade de Amatrice divulgou um comunicado oficial para corrigir o chef Carlo Cracco, cujo restaurante é estrelado no "Guia Michelin", depois de ele ter revelado que gostava de colocar alho na sua receita de macarrão amatriciana. "Confiamos em que isso tenha sido um deslize verbal do célebre cozinheiro", o comunicado afirma. "Temos a certeza de que as intenções dele eram boas".

Há um lado sombrio nas atitudes frequentemente absurdas da Itália com relação à pureza culinária. Em 2019, o arcebispo de Bolonha, Matteo Zuppi, sugeriu acrescentar alguns "tortellini de boas-vindas" sem carne de porco ao cardápio da festa de São Petrônio, em sua cidade.

A ideia era que isso fosse um gesto de inclusão, um convite para que os cidadãos muçulmanos participassem nas celebrações do santo padroeiro da cidade. Matteo Salvini, líder da Liga, um partido de extrema-direita, não aceitou a ideia. "Eles estão tentando apagar a nossa história, a nossa cultura", ele declarou.

Quando Grandi interveio para esclarecer que, até o final do século 19, o recheio do tortellini não incluía carne de porco, o presidente do consórcio de tortellini de Bolonha (sim, esse é um cargo real) confirmou que o pesquisador estava certo. Nas receitas mais antigas, o recheio do tortellini é feito de carne de frango. "Essa é a razão pela qual faço o que faço", diz Grandi. "Para mostrar que o que saudamos como tradição não é, de fato, tradição".

Hoje em dia, a comida italiana é um "leitmotiv" para os políticos de direita tanto quanto as mulheres bonitas e jovens e o futebol o eram na era Berlusconi. Como parte da sua campanha eleitoral em 2022, a primeira-ministra Giorgia Meloni postou um vídeo no TikTok no qual uma senhora idosa ensinava a selar à mão as trouxinhas de tortellini.

A primeira-ministra italiana Giorgia Meloni, em Roma
A primeira-ministra italiana Giorgia Meloni, em Roma - Guglielmo Mangiapane/Reuters

Neste mês, Francesco Lollobrigida, o ministro da agricultura de Meloni, sugeriu a criação de um grupo de trabalho para monitorar os padrões de qualidade nos restaurantes italianos em todo o mundo. Ele teme que os chefes de cozinha possam se enganar nas receitas, ou usar ingredientes que não sejam italianos.

Uma busca no Google pelo termo "Salvini mangia" (Salvini comendo) traz um carrossel de cenas farsescas: Salvini com a boca aberta devorando espaguete, Salvini sorridente atacando uma pizza gigante, Salvini de avental inspecionando fileiras de prosciuttos inteiros, Salvini erguendo o polegar diante de um cannoli siciliano, Salvini de peito nu grelhando carne, Salvini bronzeado devorando um cone de gelato, Salvini sonolento mordendo uma torrada com Nutella.

Os políticos compreendem o poder daquilo que Grandi denomina "gastronacionalismo". Que importa que a cultura alimentar tradicional que eles promovem se baseie parcialmente em mentiras, receitas inventadas por conglomerados ou alimentos importados da América? Poucas coisas são mais tranquilizadoras e agradáveis do que ver uma mulher idosa fazendo tortellini.

Nem sempre foi assim. "Os avós sabiam que era uma mentira", me diz Grandi, dando o último gole em seu prosecco. "A preocupação filológica com a proveniência dos ingredientes é um fenômeno muito recente". De fato, é difícil imaginar que as pessoas que sobreviveram à Segunda Guerra Mundial comendo castanhas, como fez o meu avô, se preocupassem com o uso de papada de porco em vez de barriga de porco em uma receita de macarrão. Ou, nas palavras de Grandi, "a 'tradição' deles era tentar não morrer à fome".

Cookie de Nutella da American Cookies
Cookie de Nutella da American Cookies - Rômulo Juracy/Divulgação

Quando perguntado se a obsessão por uma culinária nacional começou com a geração "baby boom", à qual ele pertence, uma geração que nunca experimentou a culinária italiana que existia antes do período de expansão do pós-guerra, ele sorri: "Sim, verdade: como muitas outras coisas, isso também é tudo culpa nossa".

No entanto, pode ser reconfortante acreditar em tradições, tanto do seu próprio país quanto de outros. Os consumidores internacionais aplaudem os especialistas célebres em culinária italiana que lançam livros, podcasts e programas de televisão em uma busca frequentemente obsessiva por "autenticidade".

Quando o chef italiano Gino D'Acampo rebateu com indignação à sugestão da apresentadora de TV britânica Holly Willoughby, em 2010, de que o macarrão à carbonara podia ser feita com presunto, dizendo que "e se a minha avó tivesse rodas, ela seria uma bicicleta", o vídeo da cena virou sucesso viral. Todos tanto amamos quanto odiamos a caricatura do chef italiano obsessivamente purista.

Setores inteiros de negócios cresceram em torno do mito de uma tradição culinária ancestral intocada pelos modismos alimentares modernos. Um exemplo são as empresas de turismo que organizam aulas de culinária com verdadeiras nonnas italianas nas casas delas ("tenho uma avó italiana só para mim!", me disse uma amiga britânica sobre suas férias na Toscana). Mas esse tipo de fixação na tradição é intrinsecamente restritivo. Como Grandi salienta, tradição não passa de uma inovação passada que terminou se tornando sucesso.

Minha avó pergunta se não gostei dos seus biscoitos. Comi só um. Ela me oferece mais opções: panforte, torrone, cantuccini. Depois, se levanta lentamente e apanha um livro de receitas datado de 1967, no guarda-louças. Nós o folheamos juntas. Há saladas de orecchiette coloridas com manjericão, pinhões e tomates cereja; pilhas esculturais de espaguete com almôndegas, em bandejas reluzentes; postas de vitela assadas em espetos dispostas artisticamente no mesmo prato que os pappardelli.

Tal como as receitas de macarrão à carbonara dos anos 1960, as do livro são generosas e não prescritivas. Consigo divisar nas páginas a grande empolgação de um país que tinha completado sua travessia: das filas para comprar pão e bombardeios ao Plano Marshall, Vespas e pizza de muçarela de búfala.

Naquela mesma casa, na década de 1980, Nonna Fiore certa vez serviu lasanha a alguns convidados ingleses, a pedido do meu tio. Ela preparou o prato usando uma lasanha congelada, segundo conta. Era um período movimentado em sua vida e ela não hesitou em servir uma refeição comprada pronta no supermercado; durante a guerra, aquele era um luxo com que as pessoas mal podiam sonhar. Nenhum dos convidados suspeitou que ela não tivesse preparado a lasanha do zero, nem mesmo seu filho italiano. Ela me lembra daquele momento, e depois me olha nos olhos e dá uma piscada brincalhona.

tradução de Paulo Migliacci

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