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O que é o garum, o 'ketchup do Império Romano', servido em restaurantes do Brasil

Condimento ancestral ganha novas e inusitadas versões nas mãos de chefs graças a sabores robustos e ricos em umami

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Foi quando viu a pilha de cascas de queijo se amontoarem na bancada de inox da cozinha que o chef César Costa teve a ideia: "por que não usar as aparas do queijo para fazer algo diferente?".

"Normalmente, usam-se as sobras de queijos em caldos ou molho de tomate. Eu achava muito óbvio e pensei que poderíamos buscar outra forma mais criativa de reaproveitá-las", conta ele, um dos sócios do restaurante Corrutela, em São Paulo.

Prato contendo peixe do dia, dashi de tucupi, chuchu, azeite de floras carbonizadas e garum de algas
Prato contendo peixe do dia, dashi de tucupi, chuchu, azeite de floras carbonizadas e garum de algas servido no Origem, em Salvador - Divulgação

A solução veio na forma de garum, um condimento que foi muito popular na Roma antiga e que vem dominando os menus por todo o mundo com sua capacidade de potencializar sabores robustos e ricos em umami: bastam algumas gotas para transformar um prato.

Nos tempos antigos, o garum era originalmente um molho feito de pequenos peixes eviscerados que fermentavam por muito tempo —às vezes durante um ano— em salmoura até se transformarem em um líquido espesso, um resultado da decomposição.

Consumido por todo o Mediterrâneo, o condimento remonta a milhares de anos, quando era considerado uma iguaria para fenícios, gregos e, principalmente, para os romanos, que usavam garum em tudo —era o ketchup da época.

Hoje, chefs = usam o nome garum para descrever molhos feitos a partir da fermentação de um produto com sal e koji —nome japonês para grãos inoculados com o fungo Aspergillus oryzae.

"Ele é que permite acelerar o processo de fermentação [entre 6 e 10 semanas, em média]", diz Sandor Katz, autor do livro "A Arte da Fermentação" e uma das maiores referências no assunto. "Muitos são ótimos, mas bem diferentes do garum tradicional", afirma.

Mosaico representando ânfora com garum que ficava na cidade de Pompeia
Mosaico representando ânfora com garum que ficava na cidade de Pompeia - Wikimedia Commons

Como no Corrutela, o uso da nova técnica abriu muitas possibilidades para o garum nas cozinhas modernas, o que transformou e popularizou o seu uso na gastronomia.

"No nosso garum de casca de queijo Tulha [da Fazenda Atalaia], conseguimos um sabor muito especial e pungente, quase como o de um tostex de queijo quente", diz Costa, que o usa em uma salada de folhas também feita com o mesmo queijo.

Já há garum de quase tudo: vegetais, asinha de frango, todos os tipos de frutos do mar e até formigas. O koji permitiu desbravar uma gama mais ampla de ingredientes encontrados na natureza.

Um dos restaurantes pioneiros na produção, o Noma, em Copenhagen —eleito por quatro vezes o melhor do mundo—, produz garum de formigas a cogumelos defumados —este último adicionado a uma recente linha de condimentos domésticos vendidos a clientes finais.

Foi durante um intercâmbio técnico no laboratório de fermentação do Noma que Rodolfo Vilar, do projeto A.Mar, em Ilhabela, abriu os olhos para explorar ainda mais o garum. "Já fazíamos desde 2018, mas percebi novas possibilidades para usar elementos do mar", diz ele.

A variedade que produzem inclui ingredientes como ovas de tainha, garoupa, ostras defumadas e algas. "As possibilidades são infinitas e ainda há muito a explorar", afirma.

Muitos chefs usam o processo para extrair sabores mais profundos de diferentes produtos. "É um realçador, mas que não interfere muito no paladar. Ele entra para somar, cria mais uma camada [de sabor]", diz o chef Fabrício Lemos, que tem seis restaurantes em Salvador.

Por isso, ele prefere usar garum feito a partir dos ingredientes que tem no prato ou que tenham alguma relação com o sabor predominante em questão, como no condimento de algas que usa no peixe do dia com dashi de tucupi, chuchu e azeite de flores carbonizadas que serve no seu premiado Origem, em Salvador.

Os diferentes tipos de garum são uma novidade no seu repertório de receitas desde que ele foi apresentado ao condimento por Leonardo Andrade, um dos fundadores da Companhia dos Fermentados.

Em uma recente viagem pelo Recôncavo Baiano veio a possibilidade de eles trabalharem juntos para criar um novo garum, feito com a folha da mandioca como base, em uma alusão à maniçoba.

"Temos feito alguns testes no nosso laboratório interno, mas sempre buscando usar insumos da nossa região ou que façam sentido para a cozinha que propomos", diz Lemos.

Vidros contendo amostras de garum produzido pelo projeto A.Mar
Vidros contendo amostras de garum produzido pelo projeto A.Mar - Divulgação

Na Companhia dos Fermentados, empresa que resgata técnicas antigas de conservação por meio da fermentação, a linha de garum engloba condimentos feitos com pólen, grão-de-bico, ovas de tainha ou cabeça de camarão, além de parcerias exclusivas com restaurantes.

Para o Mocotó, do chef Rodrigo Oliveira, criaram juntos um garum com as aparas da carne de sol usadas nos pratos do restaurante.

Também com partes de peixes que iriam parar no lixo surgiu um garum exclusivo para o Sororoca, restaurante dos chefs Thiago Castanho, Marcelo Corrêa Bastos e Gustavo Rodrigues que acaba de abrir as portas em São Paulo. Prova de que o uso do garum só deve crescer.

Segundo Andrade, o bom momento do garum vem de carona no recente resgate das antigas técnicas tradicionais de transformação dos alimentos tão em voga na gastronomia nos últimos anos.

Afinal, afirma, cada garum conta uma história única do local em que foi feito, além de proporcionar sabores robustos e ainda ajudar a combater o desperdício —já que permite usar cascas, talos, cabeças e descartes.

"Em tempos em que a cozinha molecular e outros exageros da gastronomia perderam força, o garum vem como uma forma ancestral de enriquecer o prato com gosto e conteúdo", diz.

as torradas de mexilhão, peperonata e pil pil com garum de carne do Cepa
Torradas de mexilhão, peperonata e pil pil com garum de carne do Cepa - Giuliana Nogueira/Divulgação
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