Fechamento do Noma levanta debate sobre sustentabilidade da alta cozinha

Restaurante, eleito melhor do mundo cinco vezes, anunciou que vai encerrar seu serviço regular

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São Paulo

Eleito melhor restaurante do mundo cinco vezes, o Noma, em Copenhague, anunciou nesta segunda (8) que vai encerrar seu serviço regular a clientes no fim de 2024. A notícia vem levantando debates sobre a forma de encarar o processo criativo, o negócio e até os funcionários na alta gastronomia.

O restaurante informou, em carta em seu site, que a proposta para 2025 é se transformar em um "laboratório gigante", com uma cozinha de teste voltada à inovação alimentar. "Servir às pessoas ainda fará parte de quem somos, mas ser um restaurante não nos definirá mais", continua a publicação.

Homem vestido de avental e camiseta preta trabalha em bancadas de uma cozinha aberta
Equipe do restaurante dinamarquês Noma trabalha na operação da cozinha - Thibault Savary - 31.mai.21/AFP

O texto, que foi assinado pelo chef René Redzepi e equipe, também afirma que o Noma está aberto a promover temporadas ou realizar pop-ups.

Redzepi, responsável pela casa aberta há duas décadas, transformou sua cozinha minimalista em símbolo da classe de restaurantes voltados à pesquisa hiper sazonal e local de ingredientes, capaz de atrair levas de turistas endinheirados —para provar os menus vegetal, florestal ou do oceano por cerca de R$ 2.700.

"Ele [o chef] está fechando no formato atual. Redzepi falou sobre o formato, que o negócio se tornou insustentável em termos de custo e de manter uma grande equipe. É uma questão que agora vai ser pensada também", diz Rosa Moraes, presidente da região do Brasil para o The World’s 50 Best Restaurants, que produz rankings regionais e globais.

Em reportagem publicada nesta segunda no jornal The New York Times, o chef afirma que o modelo de restaurante "fine dining", ou de alta gastronomia, que ajudou a criar é "insustentável". "Financeira e emocionalmente, como empregador e como ser humano, simplesmente não funciona", afirmou Redzepi, também dono de três estrelas Michelin, categoria mais alta da publicação francesa.

Segundo o jornal americano, casas de elite como o Noma estão enfrentando escrutínio sobre o tratamento dispensado a funcionários —no mundo e no Brasil, o setor acumula relatos de longas jornadas, baixa remuneração e, por vezes, de casos de assédio moral. O próprio Redzepi já admitiu comportamentos inadequados com sua equipe.

O tema é essencial para a discussão sobre a viabilidade desses estabelecimentos, afirma Joana Pellerano, antropóloga e pesquisadora na área da alimentação. "Não tem como um modelo de negócio ser sustentável e se basear na exploração. E vemos muito isso acontecer na cena gastronômica disfarçado de amor à profissão e de dedicação necessária para o trabalho", diz.


Pellerano acredita que a chegada de novas gerações às cozinhas tem contribuído para trazer visibilidade à discussão e "ajudar a desnaturalizar um comportamento que existe há tempos no setor".

Ela afirma ainda que o modelo de restaurantes de alta gastronomia baseado em pesquisas longas e complexas de ingredientes e técnicas também pode estar perdendo espaço.

"Isso reflete o cenário de um mercado que infelizmente está exigindo respostas mais rápidas, o que não permite investigações de vários meses como já foi possível no Noma. Hoje, essa pesquisa é direcionada a pratos que vão estar no cardápio semana que vem."

Imaginar que o modelo de restaurantes de alta gastronomia está se esgotando, porém, é um erro, diz o chef Ivan Ralston. Durante a pandemia, ele fechou o Tuju, restaurante em São Paulo que chegou a ter duas estrelas no Guia Michelin, e deve reabrir a casa em novo formato neste ano.

Para o chef, restaurantes de fine dining com propostas mais enxutas devem continuar existindo, em contraposição a casas "com cem funcionários", em que "você tem dez pessoas para fazer apenas um prato", diz.

"O Noma foi um restaurante muito importante nos últimos anos na história da gastronomia. Mas esse formato está acabando, inclusive porque hoje existem poucas pessoas dispostas a fazer isso e porque é inviável financeiramente", diz.

O novo empreendimento aberto por Ralston terá menos espaço para restaurante e vai incluir padaria, café, wine-bar e uma escola. "É um espaço multidisciplinar, que faz mais sentido, consigo juntar outras operações. Hoje, o mundo exige muitas coisas de um restaurante para que ele possa sobreviver, inclusive delivery", diz.

A nova configuração também permite tornar viáveis as investigações produzidas pelo Centro de Pesquisa Tuju. "Ultimamente, tudo que eu ganhei em eventos eu gastei em pesquisa. Abrir a escola, criar cursos e mostrar o que produzimos é uma forma de tornar a pesquisa viável", diz.

A necessidade de surpreender o cliente todo o tempo é outro aspecto do processo de criação de restaurantes de alta gastronomia discutido por chefs. "O poço da criatividade nem sempre é infinito como pode pensar o comensal", diz Luiz Filipe Souza, do Evvai, restaurante em Pinheiros, na zona oeste de São Paulo, que detém uma estrela Michelin.

Souza usa como exemplo o seu próprio estabelecimento, que renova o menu de três a quatro vezes por ano. Para o chef, deixar de gerar a sensação de novidade pode acarretar em uma queda na taxa de ocupação da casa.

"O que a gente faz hoje parece mais ligado à indústria do entretenimento do que à comida em si", completa. "É como no cinema. A pessoa vem até nós com a certeza de que vai encontrar alguns artifícios, mas se não encontra a novidade, ela não volta."

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