Funcionários sugerem antecipar recesso de hospital mantido por João de Deus

Instituição em Goiás vive sua maior crise, dizem voluntários; local tem queda de até 70% no movimento

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Adadiânia (GO)

"O grande teste da fé é quando as coisas parecem que estão desmoronando dentro de nós." É com mensagens como essas, citadas ao microfone, que a voluntária Luciana Souza recebe fiéis novatos e antigos que chegam para visitar a Casa Dom Inácio de Loyola, espécie de hospital espiritual em Abadiânia, no interior de Goiás.

O recado dado aos novatos serve também para a instituição. Nos últimos dias, acusações de mulheres que afirmam terem sido abusadas pelo fundador da casa, o médium João Teixeira de Faria, conhecido como João de Deus, colocaram o hospital em teste —se não de fé, de sobrevivência. 

Fundada em 1976, a instituição vive hoje uma das maiores crises de sua história. Nesta quarta (12), data anunciada como dia de retomada dos atendimentos do médium, a queda no número de visitantes já era estimada em até 70%. Nesse mesmo dia o Ministério Público pediu a prisão preventiva de João de Deus pela série de denúncias de abuso sexual.

Donos de pousadas que ficam ao lado da casa dizem que reservas estão sendo canceladas. Em uma delas, uma funcionária que pede anonimato por medo de represálias relata que 200 visitantes que estavam previstos até fevereiro já comunicaram que devem desistir da viagem. Em outra, o cancelamento para 32 quartos chegou a 80% só nesta semana.

No sábado (8), 12 mulheres relataram ao programa Conversa com Bial e ao jornal O Globo terem sido vítimas de abuso sexual pelo médium durante atendimentos na casa. Desde então, o número de denúncias cresce a cada dia, situação que levou o Ministério Público de Goiás, a anunciar uma força-tarefa para receber relatos e depoimentos em parceria com outros estados. Segundo a Promotoria, já houve mais de 200 atendimentos, a maioria por email, a mulheres que se apresentam como vítimas de João de Deus.

 
Antes mesmo do pedido de prisão do médium feito pelo Ministério Público, um dos principais encarregados da administração da Casa Dom Inácio, Chico Lobo, afirmou que a direção já estudava medidas para tentar contornar a crise. Para Chico, o ideal seria que houvesse um recesso antecipado, afirma. “A direção está estudando isso.”
 
O desafio será convencer o médium disso, diz Lobo, que já foi vereador e prefeito de Abadiânia, e recebeu o convite de João de Deus para trabalhar na casa há 14 anos. "Acho muito improvável [que ele aceite]. Ele é duro na queda", afirma. "Mas vamos levar ao conselho e a ele."

Nesta quarta, o médium visitou o espaço, em sua primeira aparição pública após a série de denúncias. Chegou em um carro Cobalt branco com mais duas pessoas às 9h30, cerca de uma hora depois do seu horário habitual —em geral, o médium inicia os atendimentos na casa sempre às 8h de quartas, quintas e sextas-feiras. 

Houve tumulto. Alguns jornalistas que tentavam acompanhá-lo foram empurrados e agredidos por fiéis e voluntários da instituição. Visitantes bateram palmas ao ver a chegada. Dentro da sala, o médium disse que pretendia cumprir a lei brasileira e que "João de Deus ainda estava vivo".

Menos de dez minutos depois, o médium deixou o local, alegando que sua pressão arterial havia subido. Na saída, afirmou à imprensa que era inocente.

A confusão assustou voluntários e fiéis, deixando o local ainda mais vazio à tarde. Por volta das 15h, quando o comum seria ver filas espalhadas pela área central do lugar, a maioria dos frequentadores concentrava-se na "sala das correntes", espaço onde visitantes ficam de olhos fechados e fazem meditação para "alinhar as energias". 

A Folha visitou o local a convite de voluntários da instituição. Dentro, pessoas vestidas de branco rezam de olhos fechados. No percurso, tomavam um copo de água fluidificada antes de receber um "passe" coletivo, tipo de benção espiritual.

Com capacidade para 350 pessoas, o espaço tinha ainda cadeiras vazias —incluindo a principal, reservada ao médium durante os atendimentos. 

A ausência trouxe insegurança e frustração a parte dos frequentadores que esperavam a visita para tratamentos espirituais. "Vim para o tratamento da minha filha. Fiquei um pouco decepcionada por não vê-lo", afirma Marinete Araujo Silva, 35, que defende o médium. "Não posso dizer que ele é inocente, mas também não posso culpá-lo."

Já um turista europeu disse à Folha que, com as denúncias, planeja interromper as visitas que realiza à Casa há 27 anos. Outros evitavam falar com a imprensa ou pediam para não ser identificados.

As notícias sobre as acusações também pegavam turistas de surpresa.

Moradora de Chicago, uma americana de 52 anos diz ter ficado sabendo sobre os relatos apenas nesta terça —quando já estava a caminho do Brasil. Segundo ela, a situação deixou o grupo de amigos que a acompanha em dúvida sobre manter as visitas. "Ninguém sabe o que fazer. Eu já não tinha muitas expectativas, então decidi vir igual", afirma. 

Lobo admite preocupação. "Já tivemos crises de não dar conta do atendimento pelo número de visitantes, mas nunca casos como esses", diz. "Já fui um dos administradores de Abadiânia e sei que 65% da renda per capita gira em torno daqui. A queda de frequentadores afeta a renda do município", diz. 

Fora do hospital, comerciantes e funcionários de hotéis dizem temer o fim dos negócios. "Muita gente depende desse ponto turístico para viver. Ainda tenho uma excursão para chegar mas, depois disso, tenho certeza que o movimento vai cair bastante", afirma Gabriel Rocha, 20, que trabalha em uma das pousadas próximas à casa.

"Se fechar a casa, aí acaba tudo", afirmou Verônica Paranhos, 53, dona de um restaurante ao lado do hospital.  

Sem poder garantir a presença do médium, o guia José Batista, que faz viagens semanais do Mato Grosso a Abadiânia, cancelou a vinda de um ônibus que sairia de Lucas do Rio Verde. "Se chega e ele não está, a pessoa fica em dúvida", afirma.

RELATOS

Em menos de dois dias, a Promotoria de Goiás afirmou ter feito ao menos 206 atendimentos de mulheres que se identificam como vítimas de abuso sexual por João de Deus. 

Em comum, a maioria delas diz que receberam um aviso de “procurar o médium João” em seu escritório ao fim das sessões em que ele atende aos fiéis. 

No local, relatam as vítimas, João de Deus dizia que elas precisavam de uma “limpeza espiritual” antes de abusá-las sexualmente.

Na segunda, a  Aline Saleh, 29, contou sua história à Folha: "Quem tem de sentir vergonha é ele, e não eu." Ela conta que, em 2013, esteve na Casa e que foi levada para um banheiro, posta de costas e que João de Deus colocou a mão dela em seu pênis.

O promotor Luciano Miranda Meireles afirmou que os depoimentos podem ser o único meio de comprovar as acusações, já que crimes como o de estupro não ocorrem à luz do dia nem têm testemunhas.

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