Comunidade quilombola em MG fica deserta com moradores em busca de emprego

Trabalhadores relatam ser submetidos a péssimas condições de trabalho em outras regiões

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Fernando Granato
São Paulo

Vila Santo Isidoro é uma comunidade quilombola certificada pela Fundação Cultural Palmares, em 2006, que fica no município de Berilo, norte de Minas Gerais. É conhecida como uma vila deserta entre os meses de abril e novembro, quando cerca de 40% de seus 750 moradores migram para outras localidades para trabalhar nas colheitas de cana e café, sobretudo do sul de Minas e Goiás, por absoluta falta de outra possibilidade de ganho na região.

O fim de ano é a época de maior fartura e festa, quando os migrantes –nem todos– voltam para suas casas com um pouco de dinheiro no bolso.

Um homem alto, magro, de ascendência africana, contou que, neste ano, passou sete meses trabalhando longe da família numa usina de produção de álcool em Goiás, em condições próximas àquilo que ele chama de "uma segunda escravidão".

Ele prefere não divulgar o nome nem o da usina, porque pode e deve precisar voltar para o mesmo trabalho no ano que vem.

Trabalhador resgatado em situação análoga à escravidão, em Minas, em junho deste ano - Ministério Público do Trabalho/Divulgação

"Olha, seu moço, vou dizer pro senhor: não deve ser muito diferente do que meus antepassados escravos passaram em outros tempos", disse ele. "É trabalho por mais de 12 horas por dia, embaixo do sol, com pequenas paradas para beber água, lanche e comer a marmita. À noite, dormem mais de 40 num único cômodo e às quatro da manhã já tá todo mundo de pé."

O morador contou ainda que a remuneração na usina é por produção, o que deixa o trabalho ainda mais cansativo, já que a produtividade está diretamente ligada ao maior esforço físico. Quem não trabalha exaustivamente, ele diz, fica com média de produção abaixo dos colegas e não ganha o suficiente.

Outra moradora de Vila Santo Isidoro, que igualmente não quer ter o nome divulgado, contou que deixou de ir para a colheita de café depois que teve filho.

"Descobri que estava grávida no meio da colheita, mas não contei para ninguém porque se o patrão soubesse me cortava do serviço", disse. "Foi trabalho duro, de sol a sol, mas graças a Deus não afetou minha criança".

Agora, apenas o marido viaja para a colheita e fica seis meses por ano longe da família.

De acordo com a professora Sandra Aparecida Santos, que leciona na única escola da Vila Santo Isidoro, a migração em massa afeta a vida de toda a comunidade.

"A gente observa a ausência da figura paterna nas famílias, porque, geralmente, os homens que viajam", disse.

"A gente sabe que o vínculo é criado no dia a dia. Além disso, tem a questão cultural, os viajantes ficam distantes da sua cultura quilombola, dos nossos valores e costumes e acabam trazendo influências de fora que nem sempre são as mais desejáveis."

Vila Santo Isidoro foi fundada nos anos 1950 por descendentes de escravos, que se reuniam em torno de um cruzeiro para fazer orações. Antes disso, no século 19, o local abrigava escravos fugidos de garimpos da região de Diamantina, distante 250 quilômetros.

A ancestralidade dos moradores faz com que, até hoje, eles preservem elementos da cultura africana, como o congado e a festa de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos.

Segundo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), Berilo é um dos municípios mais carentes de Minas Gerais, com PIB (Produto Interno Bruto) per capita de R$ 8,6 mil, contra R$ 35,9 mil na média brasileira.

É também a cidade do estado com a maior quantidade de comunidades quilombolas: 31, das 1.043 existentes em Minas Gerais.

Alojamento precário de trabalhadores resgatados em situação análoga à escravidão em agosto deste ano, em Goiás - Ministério Público do Trabalho/Divulgação

A situação precária de trabalho a que se submetem os moradores de Vila Santo Isidoro não é uma exclusividade daquele lugar. De acordo com Rosana Avelar, pesquisadora do Cedefes (Centro de Documentação Eloy Ferreira da Silva), uma ONG mineira que estuda os movimentos sociais, essa realidade é comum sobretudo em comunidades do Vale do Jequitinhonha e do norte de Minas.

"Muitos quilombolas, na falta de oportunidade de gerar renda no local ou na região em que vivem, se submetem a trabalhos em grandes lavouras e propriedades em São Paulo e Goiás", explicou.

Um estudo conduzido por pesquisadores da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) procurou estabelecer a relação entre municípios com comunidades quilombolas e cidades com presença de trabalhadores resgatados em condição análoga à escravidão.

Cruzando dados do Ministério Público do Trabalho, do IBGE e da Fundação Cultural Palmares, os pesquisadores Bernardo Freitas Gonçalves e Diego Rodrigues Macedo chegaram à conclusão de que metade dos municípios estudados que tinham comunidades quilombolas possuíam também pessoas resgatadas em situação análoga à escravidão. Já nas cidades estudadas sem a presença de quilombolas, esse índice caía para 25%.

De acordo com Alpiniano do Prado Lopes, procurador-chefe do Ministério Público do Trabalho em Goiás, "a maioria esmagadora" das mais de 200 pessoas resgatadas em condição análoga à escravidão naquele estado, neste ano, era negra ou parda.

"Realmente estamos vivendo uma segunda escravidão, tão grave como a primeira", disse ele. "Hoje não temos os grilhões, mas em compensação as pessoas são consideradas descartáveis. No tempo da escravidão os senhores preservavam a vida dos cativos pelo interesse patrimonial, hoje nem isso."

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