Aplicativo que permite acesso à Maria da Penha pelo celular recebeu mais de 2.500 denúncias

Site foi criado por estudantes de direito da UFRJ durante a quarentena imposta pela Covid-19

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Brasília

No dia em que Amanda chegou ao apartamento que ainda dividia com o então marido e viu que suas coisas tinham sido atiradas por ele no corredor, ela se sentou no chão do prédio e chorou, sem saber o que fazer. Ela estava em processo de separação, e foi expulsa do apartamento —onde morava com os filhos— repentinamente.

Amanda (o nome é fictício) já tinha feito denúncias contra o marido. A primeira foi no começo da separação, pelo 180 —a Central de Atendimento à Mulher. "O processo não evoluiu, não teve [medida] protetiva, ficou só numa conversa com o atendente", diz. A segunda foi numa delegacia, em uma das vezes que ele tentou colocá-la para fora de casa. "Lá, só me sugeriram voltar com um chaveiro e trocar a fechadura."

Maria da Penha Maia Fernandes, vítima de violência doméstica que lutou por anos para que seu agressor fosse condenado - Jarbas Oliveira - 2019/Folhapress

Por isso, ela não tinha expectativas quando fez uma terceira denúncia, pelo celular, com as coisas ainda esparramadas pelo chão. Amanda usou o aplicativo Maria da Penha Virtual, lançado na cidade do Rio de Janeiro em 2020 e no resto do estado em 2022.

"Não sabia quanto tempo ia levar, mas em uma semana me ligaram", conta. Uma psicóloga entrou em contato para que ela explicasse a situação. O que ela tinha sofrido tem nome: violência patrimonal e psicológica —ambas abarcadas pela Lei Maria da Penha. Ela conseguiu uma medida protetiva por 90 dias e a sensação, diz, foi "de paz".

Até novembro de 2022, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro tinha recebido 2.582 denúncias por meio do aplicativo —só no último ano, foram 1777. O Maria da Penha Virtual surgiu em 2020, durante a pandemia da Covid-19, em um grupo de estudos sobre tecnologia e direito da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro).

"Vimos uma reportagem sobre como a violência doméstica estava aumentando na quarentena sem que as mulheres tivessem como denunciar, porque tinham delegacias fechadas e elas estavam presas em casa com os agressores", diz a professora Kone Cesário, coordenadora do projeto e vice-diretora da Faculdade de Direito.

"Foi aí que um aluno me trouxe a ideia de aplicativo e nós levamos para o tribunal."

Em conjunto com o Tribunal de Justiça do Rio, os estudantes desenvolveram um formulário que envia diretamente para o juizado de violência doméstica e familiar o pedido de medida protetiva de urgência. Isso é feito por um site, que pode ser acessado pelo celular e pelo computador.

"Você descreve o que aconteceu e pode anexar fotos, o que, no meu caso, foi muito importante porque eu tinha registrado o que ele fez com as minhas coisas, jogando tudo no corredor", afirma Amanda.

Para a juíza Adriana Ramos, titular do 1º Juizado da Violência Doméstica e Familiar contra Mulher do Rio, um ponto importante do Maria da Penha Virtual é que ele não armazena os dados da denunciante.

"Isso foi algo que nós pensamos desde o início, porque tem mulheres que compartilham o celular com o agressor, ou que ele poderia ir mexer no telefone dela depois", afirma.

Adriana Ramos de Mello, juíza do TJ-RJ responsável pelo programa Maria da Penha Virtual - Gabriel Cabral/Folhapress

De acordo com dados do TJ, a regional líder em número de pedidos de medida protetiva de urgência é a de Leopoldina, na Zona Norte, com 240 utilizações do aplicativo no ano passado. É nela que estão os Complexos do Alemão e da Maré, duas das maiores favelas da cidade.

"A partir da concessão da medida protetiva, é acionado outro programa, a Patrulha Maria da Penha, da Polícia Militar, que faz com que essa medida seja cumprida", explica a juíza. Ramos conta que acompanhou um caso em que a mulher estava em cárcere privado com o agressor, e foi resgatada a partir de uma denúncia que conseguiu fazer pelo celular.

A interlocução virtual e direta entre a vítima e o Judiciário preocupa alguns especialistas. Segundo a socióloga Wânia Pasinato, atribuir às mulheres o papel de prestar as informações corretas pode ser uma forma de violência.

"É por isso que nós passamos tanto tempo falando sobre a importância de um tratamento humanizado, de treinamento das equipes policiais para que essa mulher seja bem atendida", diz ela. "Sabemos que os atendimentos hoje não são como deveriam ser, mas não podemos dizer ‘é horrível, então vamos fazer com que elas mesmas solicitem’."

Além disso, Pasinato afirma que a aposta em ferramentas tecnológicas como meio de corrigir a lentidão do sistema judiciário pode excluir das melhorias as mulheres mais pobres e vulneráveis, sem acesso à internet.

Cesário diz que a humanização é levada em conta no aplicativo, e que as mulheres recebem suporte psicológico e acompanhamento após a solicitação inicial pelo app.

Atualmente disponível apenas no estado do Rio, o projeto agora deve ser ampliado. Rafael Wanderley é o aluno de direito da UFRJ que teve a ideia do Maria da Penha Virtual. Atualmente, ele é um dos fundadores da startup Direito Ágil, e administra a expansão da tecnologia para outros estados: em 2023, o modelo será levado para a Paraíba. Um piloto será implementado nos municípios de Sousa, Santa Rita e Campina Grande.

Além disso, Ramos afirma que a universalização do acesso ao projeto também está sendo pensada. "Seria importante ter totens em unidades de saúde ou outros ambientes que as mulheres frequentem onde elas poderiam fazer a denúncia sem serem notadas, ou caso não tenham como usar internet em casa."

Esta reportagem está sendo publicada como parte do projeto "Towards Equality", uma iniciativa internacional e colaborativa que inclui 14 veículos de imprensa para apresentar os desafios e soluções para alcançar a igualdade de gênero.

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