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Joanna Cassange vestiu roupas elegantes para fugir da escravidão

Fuga registrada em jornal aconteceu em 1831 na cidade do Rio de Janeiro

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Giovana Xavier

Professora da faculdade de educação da UFRJ e professora visitante da Universidade de Nova York (programa Fulbright)

Rio de Janeiro

Foi com prazer que lembrei uma personagem apresentada a mim pela historiadora Evelyn Lucena na dissertação de mestrado "Josefa Moçambique, Clara Rebolo, Joaquina de Nação e Quitandeira Monjolo: Novas Narrativas para o Ensino de História da Escravidão" e que fez meu coração bater mais forte: Joanna Cassange.

No auge dos seus "trinta e tantos annos", escrava de um senhor no centro da cidade do Rio de Janeiro, ela decidiu fugir do cativeiro. Originária da região de Angola, como sugere o Cassange, sobrenome que faz alusão ao seu local de procedência, a decisão radical da moça "alta e magra", que levou seu proprietário a prometer "alviçarias" para quem a capturasse, tem um detalhe que pode passar despercebido. Para mim, é o centro da história.

Sobre um fundo branco, ilustração de Veridiana Scarpelli publicada na Folha de S.Paulo em 14 de outubro de 2023 mostra uma mulher negra. Ela aparece da cintura para cima, usa um vestido branco gelo e uma manta preta esvoaçante, que passa em volta do pescoço, por baixo do braço direito e segue em direção ao quadril. Ela está de perfil, olhando em direção ao canto esquerdo da cena. Os cabelos estão presos em um grande coque, com uma fita dourada. Os brincos têm duas pequenas pedras brancas, como se fossem pérolas. No pescoço, um colar redondo, largo e dourado. Os traços do rosto são bem delicados.
Em 1831, Joanna Cassange usou roupas e penteado impecáveis para fugir da escravidão no centro da cidade do Rio de Janeiro - Veridiana Scarpelli/Folhapress

Além de todo o trabalho intelectual que criar um plano de fuga envolvia –traçar itinerários, gerir os poucos recursos, ter uma narrativa convincente em caso de interpelação–, o planejamento de Joanna, que andava a "vender quitandas", continha um tópico fantástico: a definição de um look e de um penteado bafônicos para escapar da escravidão.

Ficamos sabendo disso pelo anúncio publicado no Diário Carioca de 24 de fevereiro de 1831. O jornal informou que a "preta de nação" fugiu "levando vestido branco e saia de lila nova por cima, e baeta preta nova fina", calçando "chinelas" e "cabelo muito bem penteado".

Em vez do caminho mais fácil, que é o de desistir de saber mais sobre ela, argumentando a inexistência de fontes escritas na primeira pessoa, a primeira coisa que nós, pessoas do século 21, podemos fazer é, de posse das informações que o miúdo anúncio de jornal fornece, entrar na mente de Joanna para tentar entender como mulheres escravas lançavam mão da criatividade para construir seus sentidos de humanidade.

Uma humanidade que, mesmo nas condições mais degradantes que a escravidão impunha, a "preta de nação" praticou da forma que lhe era possível: mantendo a autoestima e o autocuidado em dia, com figurino e penteado impecáveis, no qual se destacam os pés calçados, um símbolo da liberdade negra que atravessa o tempo.

Obra de Rosana Paulino que ilustra a nova edição de "Um Defeito de Cor", romance de Ana Maria Gonçalves, publicada pela Record - Rosana Paulino/Divulgação

O fato de desenhar um plano de fuga que teve como fio-condutor um sentido de boa aparência definido nos seus próprios termos, de uma mulher negra aventurando-se na experiência de ser livre no mundo escravista, levam-me a perguntar: sua decisão de fugir na beca foi uma estratégia eficaz de se misturar à significativa parcela de pretas forras (liberdade conquistada por meio de carta de alforria) do século 19 encobrindo sua condição escrava?

Ou, pelo contrário, o fato de se apresentar com elegância e sofisticação acabara por ter um efeito reverso, chamando a atenção da imprensa e das autoridades para si enquanto uma escrava fugitiva e assim favorecendo a recaptura?

Para decifrar este enigma, é importante interrogar o passado: quais eram as imagens e comportamentos esperados para negras, escravas, livres e forras no Rio de Janeiro, capital da corte imperial? Como essas mulheres lançavam mão de suas leituras de mundo?

No caso de Joanna, ela criou para si uma imagem transgressora de requinte e elegância que, além de afirmar seu compromisso com o autocuidado, confundia autoridades e elites em favor de seus projetos e sonhos relacionados à obtenção da liberdade.

A gente não sabe ao certo o que aconteceu com ela, mas conseguimos encontrar caminhos para escrever sua história na primeira pessoa por meio das poucas linhas de um anúncio de fuga.

Uma história de valorização da autoestima pela qual aprendemos algo mais importante do que a certeza do destino da elegante quitandeira: indagar documentos históricos em busca da humanidade de mulheres escravas é uma forma de posicioná-las como sujeitas, driblando a história única de subalternidade e reconhecendo seu protagonismo pelas chaves da criatividade, coragem e beleza de se moverem com glamour para além da dor.

Projeto retrata mulheres ao longo da história do Brasil

O projeto Mátria Brasil apresenta mulheres relevantes e, em geral, pouco conhecidas ao longo da história do país, desde a invasão portuguesa até os dias de hoje.

Os textos são assinados por historiadoras e historiadores de diversas regiões brasileiras, e têm publicação semanal ao longo de seis meses.

A série foi idealizada pela professora do departamento de história da Universidade Federal da Bahia (UFBA) Patrícia Valim, que também é uma das coordenadoras do projeto.

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