Pagode baiano reafirma protagonismo no reino do axé e finca raízes no Carnaval

Evolução da chula e do samba duro, ritmo teve seu primeiro sucesso nacional há 30 anos com o "Melô do Tchaco", de Tonho Matéria

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Salvador

Era quinta-feira de Carnaval quando a Praça Castro Alves, em Salvador, apinhada de foliões, ouviu os primeiros acordes de "Macetando", música que Ivete Sangalo elegeu como aposta para o verão. Mais tarde, em Campo Grande, também na capital baiana, Leo Santana despontou na avenida em meio a um coro de fãs que cantavam "Perna Bamba".

Bastaram três dias para que as músicas alcançassem as primeiras posições no ranking de execuções no Brasil da plataforma Spotify. Dos trios para os fones de ouvido, as obras têm características distintas, mas uma raiz comum que as une: o pagodão baiano.

Filho do samba-de-roda e da chula, evolução do samba duro das festas juninas de Salvador, o pagode baiano reafirma o protagonismo no reino do axé e finca os dois pés no Carnaval três décadas após o lançamento daquele que seria o seu primeiro sucesso nacional.

Foto mostra homem negro, susando uma fantasia verde com brilhos e cantando com o microfone na mão direita
Leo Santana, um dos principais nomes do pagode baiano, se apresenta no Carnaval 2024 em Salvador - Alfredo Filho / Secom PMS

Foi em 1994 que o "Melô do Tchaco", do cantor e compositor Tonho Matéria, saiu das rodas de samba da periferia para ganhar as rádios de Salvador e ultrapassar as barreiras da Bahia ao chegar ao programa da Xuxa, na TV Globo.

A música é a faixa de abertura do LP "Tá na Cara", gravado no inverno daquele ano e que se tornaria um dos maiores sucessos do Carnaval de 1995. O nome original da faixa era "Pout Pourri Samba Duro", uma junção de seis músicas da cena do samba de bairros da periferia de Salvador.

A música faz citações a grupos que bebiam na fonte do samba duro na época, caso do Mania de Querer, Jeito Faceiro e Turma da Usura, que mais tarde se transformaria na Gang do Samba. Também destaca o Beco de Gal, na avenida Vasco da Gama, que era um dos redutos dos sambistas baianos.

"Foi uma forma que encontrei para divulgar que Salvador também tinha samba duro, que é uma clave que vem da chula do Recôncavo. A música virou um sucesso da noite para o dia", relembra Tonho Matéria, que vem da tradição do samba-reggae, foi cantor de blocos afro e hoje lidera o Bloco da Capoeira.

Naquele mesmo verão, duas músicas da banda Gera Samba, que depois passaria a se chamar É o Tchan, também despontavam na cena do samba duro da Bahia: "Tomás do Sul" e "O Trenzinho".

O sucesso pavimentou a profissionalização de grupos que antes estavam restritos às comunidades de Salvador. Ganharam o Brasil bandas como Terra Samba e Companhia do Pagode, ambas costelas do Gera Samba, que fariam sucesso nos anos seguintes e venderiam centenas de milhares de discos.

O É o Tchan se tornaria uma coqueluche em todo o país com suas letras e coreografia, emplacando sucessos em série ancorados na dupla de cantores Beto Jamaica e Compadre Washington e no trio de dançarinos Jacaré, Carla Perez e Débora Brasil, além do empresário Cal Adam.

Após esta primeira fase, o pagode viveria uma nova revolução comportamental e rítmica que aconteceu no fim dos anos 1990, com o Harmonia do Samba.

De um lado, ganhou as linhas de baixo popularizadas por Mestre Bimba, produtor musical da banda, e que influenciariam uma geração de músicos. Do outro, a banda deixou as dançarinas em segundo plano: o cantor Xanddy assumiu o papel do frontman sensual e fez o homem baiano rebolar.

A segunda grande mudança veio com o Psirico, grupo liderado por Márcio Victor, na época um dos percussionistas mais badalados da Bahia. A banda deu mais potência à percussão e inseriu elementos que resultariam na vertente conhecida como groove arrastado.

"Márcio Victor traz esses elementos de timbragem eletrônica que criou outra sonoridade. Isso gerou um pagodão diferente daquele que fizemos no passado", explica Tonho Matéria.

Nos anos seguintes, Parangolé e Fantasmão trilhariam neste caminho com letras com cunho de crítica social influenciadas pelo hip hop –o disco "A Verdade da Cidade", do Parangolé, é considerado um marco. Grupos como Pagodart e Saiddy Bamba apostariam, com sucesso, em duplo sentido e danças sensuais.

Em três décadas, o pagode baiano construiu uma estrutura comercial sólida, ousou experimentações rítmicas e ganhou uma legião de fãs. É um dos estilos de música mais populares na Bahia, com trios elétricos que arrastam multidões no Carnaval, e que mantém suas raízes na periferia.

Seu nome mais popular é o cantor Leo Santana, que despontou em 2010 como líder da banda Parangolé e explodiu nacionalmente com a música "Rebolation", maior sucesso do Carnaval daquele ano.

Quatro anos depois, ele migrou para carreira solo e intensificou o intercâmbio com outros ritmos que ganharam popularidade no país, como o funk, o sertanejo e, mais recentemente, o piseiro. Para Leo, por ser um ritmo da periferia, o pagode baiano nem sempre tem o reconhecimento que merece.

"Fico incomodado porque algumas pessoas têm certo preconceito com esse movimento, algo parecido com o que acontece com o funk. O funk é um som periférico, é um som de favela. O pagode também é um som de favela", disse o cantor em entrevista à Folha em 2020.

No Carnaval, os trios elétricos comandados por nomes do pagode como o cantor Igor Kannário e a banda La Fúria estão entre os mais disputados e quase sempre desfilam sem cordas, atraindo uma multidão de foliões que saem dos quatro cantos da cidade.

Nos últimos anos do festejo, destacaram-se artistas como Oh Polêmico e O Kannalha, que seguem uma vertente do pagode com maior influência do funk, incluindo letras de cunho sexual, além de bandas como Àttooxxá, que une o pagode a influências do rap e o uso de sintetizadores.

Também ganharam espaço nomes como A Dama, principal representante de uma nova safra de bandas lideradas por mulheres, uma raridade na cena do pagode das décadas anteriores. Uma exceção no passado foi Claudia Leitte, que teve uma rápida passagem nos vocais da Nata do Samba.

O ritmo ampliou seu espaço no Carnaval e foi abraçado por nomes tradicionais do axé, como Ivete Sangalo. A cantora, que completa 30 anos de carreira em 2024, sempre cantou o pagode baiano em seus shows e desfiles nos trios elétricos, e nos últimos anos tem apostado em músicas próprias.

"Flertar com isso é um direito. Não há quem cale essa voz fortíssima do pagode", disse Ivete no início do mês em entrevista ao jornal Correio, da Bahia, ao ser questionada sobre a influência do pagode.

Além de "Macetando", Ivete emplacou outros sucessos recentes que seguem a mesma linha, como "Cria da Ivete" e "Tá Solteira, Mas não Tá Sozinha" –esta última em uma parceria com o Harmonia do Samba.

Com o pé na porta, o pagodão se tornou um dos ritmos predominantes e divide espaço com o axé, cujo cancioneiro de quatro décadas não sai de moda e ganhou status de clássico na música carnavalesca.

Para o pioneiro Tonho Matéria, a ascensão do ritmo foi como uma espécie de grito da periferia negra de Salvador após um processo que ele chama de embranquecimento dos principais nomes da música de Carnaval da Bahia.

"Era como se a matriz não fosse um produto real, fosse algo negado o tempo inteiro. Mas o pagode sobreviveu porque tem músicas de verdade, que contam a história daquelas comunidades."

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