Descrição de chapéu Ética & Saúde genética

Organização Mundial da Saúde assume diretrizes sobre edição genética

Tecnologia esbarra em dilemas éticos sobre o aperfeiçoamento genético humano

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Marina Fonseca Ricardo A. Santos Joana d’Avila
São Paulo e Rio de Janeiro

Após dois anos de debate, a OMS (Organização Mundial da Saúde) lançou em julho documentos apoiando a regulação da edição genética. Os textos fazem recomendações sobre a governança e a supervisão da edição do genoma humano, uma questão espinhosa para governos e pesquisadores.

As diretrizes incluem o registro de pesquisas com edição do genoma humano, o combate à pesquisa ilegal, não registrada, antiética ou insegura, a propriedade intelectual e o dumping ético —que ocorre quando pesquisas são desenvolvidas em países que tenham fragilidades legais e institucionais.

Enfermeira recoberta de roupas de segurança observa o lado de fora de um prédio
A enfermeira Rani Simões de Resende, 32, em plantão na UTI de Covid do HC de Porto Alegre  - Daniel Marenco - 12.mar.21/Folhapres

Os documentos propõem que a OMS assuma a liderança moral e científica sobre o uso de técnicas de edição genética. Está prevista para 2022 a discussão da criação de um mecanismo de denúncias anônimas para atividades que desrespeitarem as diretrizes.

Em entrevista à Folha, Katie Hasson, pesquisadora do Centro para Genética e Sociedade de Oakland, na Califórnia, exaltou a iniciativa da OMS, mas compartilhou preocupações com a falta de ônus para quem desrespeitar as normas definidas.

Hasson argumenta que, apesar de o uso de técnicas de edição genética para condições graves ser consenso na comunidade científica, ainda é preciso discutir muitos detalhes. "Quem pode traçar essas linhas? O que constitui uma doença séria versus uma doença não séria?"

Formado em medicina e direito, Julian Hitchcock trabalha com a regulamentação de tecnologias de ciências da vida e argumenta que uma proibição internacional partindo da OMS é improvável.

"A razão óbvia é o fato de que, para serem legítimas, as leis devem refletir a vontade de quem nomeia os legisladores, e não a de um grupo de indivíduos não eleitos". Hitchcock diz ainda que o relatório tem caráter normativo e, provavelmente, será refletido pelas leis de cada país.

Doris Schroeder, diretora do centro para ética profissional da universidade de Lancashire, no Reino Unido, diz que as autoridades brasileiras precisam comunicar os riscos da edição genética para a América Latina, que podem ser diferentes.

O Brasil proíbe a edição genética de embriões. Mas são permitidas terapias celulares avançadas, bioengenharia tecidual e terapia gênica, como no tratamento do câncer.

Martin Bonamino, pesquisador do Inca (Instituto Nacional do Câncer), utiliza o método Crispr para manipular genes específicos que têm relevância terapêutica no tratamento do câncer. A técnica consiste em identificar uma região (ou sequência) do DNA e promover um corte preciso nesse ponto.

Ele coleta linfócitos T de pacientes com câncer e edita essas células no laboratório para "desligar" algumas proteínas que inibem a função da célula T. Os linfócitos T editados terão a capacidade de reconhecer e matar os tumores. A pesquisa está em desenvolvimento para uso clínico no futuro.

É a chamada terapia gênica, que envolve a manipulação da função de um gene ou a introdução de genes sadios com técnicas de edição.

Esse tipo de terapia tem sido usada com sucesso no tratamento de diversos tipos de câncer —como leucemias e linfomas— e doenças causadas por genes defeituosos.

Outras aplicações possíveis da edição genética são a criação de linfócitos humanos resistentes à infecção por HIV, a eliminação dos mosquitos transmissores de malária e dengue, o transplante de órgãos de porcos editados em humanos e a cura de doenças monogênicas como fibrose cística e diabetes tipo 1.

O método Crispr é a forma mais simples e eficiente de edição genética descrita até hoje. Praticidade e baixo custo fomentam sua utilização de forma indiscriminada na edição genética de humanos, e essa é a maior preocupação de Jennifer Doudna, bioquímica americana e uma das criadoras da técnica.

A cientista fez um apelo à comunidade científica em prol do uso racional da tecnologia em humanos, dirigindo o foco ao desenvolvimento de terapias gênicas para tratar doenças, e não à edição de genes hereditários —que podem ser transmitidos às gerações subsequentes, modificando as características dos descendentes.

Crispr-cas9, técnica de edição do DNA que pode mudar o mundo da biologia, medicina e agronomia
Crispr-cas9, técnica de edição do DNA que pode mudar o mundo da biologia, medicina e agronomia - Jennifer Doudna/UC Berkeley


A edição genética hereditária é aquela feita em embriões que, uma vez implantados, se desenvolvem dando origem a um ser humano geneticamente modificado, como as gêmeas chinesas que teriam nascido resistentes ao HIV.

Na edição não hereditária ou somática, apenas algumas células do DNA são mudadas para o tratamento de doenças causadas por determinados genes defeituosos.

Apesar da edição hereditária ser a mais polêmica, a não hereditária também carrega questões, como o acesso desigual devido a altíssimos custos. Um tratamento experimental para linfoma com células CAR-T com técnica de edição genética, aplicado com sucesso na USP em 2019, tem estimativa de custo total de US$ 1 milhão.

Bonamino diz que não é possível garantir 100% de acurácia na técnica, o que faz a edição de células-tronco bastante perigosa. Isso porque tais células podem se diferenciar em outros tipos celulares (como acontece no embrião). Uma edição imprecisa, por menor que seja, pode ter consequências imprevisíveis.

"Qualquer edição genética pode ter erro, e não se conhecem os riscos ainda para a edição genética humana", afirma o pesquisador do Inca.

O potencial da edição genética vai além da área da saúde. O método Crispr pode ser usado em qualquer célula viva, animais, plantas e microorganismos, permitindo ampliação de modelos de estudo para a pesquisa básica, além de aplicações na agricultura e na pecuária, como o melhoramento de vegetais, a produção de alimentos transgênicos resistentes à pragas etc.

Afinal, a comunidade científica deve prosseguir com as pesquisas para entender os riscos e determinar limites, ou primeiro determinar um limite e continuar as pesquisas sem riscos?

Essas e outras questões serão discutidas na próxima cúpula internacional sobre edição genética humana (Third International Summit on Human Genome Editing), que acontecerá em Londres no próximo ano.

Principais descobertas e marcos regulatórios da edição genética

Tecnologias que alteram sequências de genes são usadas em pesquisa médica, agropecuária e ciências ambientais


1944 Oswald Avery, bacteriologista canadense, define o DNA como a molécula que carrega a informação genética

1953 Rosalind Franklin, James Watson e Francis Crick desvendam a estrutura do DNA. A biofísica britânica produziu imagens de difração de raios X do DNA fundamentais para construir o modelo dupla hélice criado pelos dois

1972 O bioquímico americano Paul Berg "corta" e "cola" cadeias de DNA, criando híbridos de vírus e bactérias. É o primeiro DNA recombinante da história e prenúncio da engenharia genética

1975 Berg organiza a Conferência de Asilomar, para discutir as tecnologias de manipulação de genes, especialmente a biossegurança

1985 Aaron Klug, químico britânico, descobre as nucleases dedo de zinco, primeira ferramenta de edição genética, que usa nucleases e proteínas para reconhecer e cortar partes específicas do DNA

2011 Surge a ferramenta de edição de alta precisão Talen (Transcription Activator-Like Effector Nucleases), também baseada em nucleases e proteínas

2012 Jennifer Doudna, bioquímica americana, e Emmanuelle Charpentier, microbiologista francesa, descrevem o método Crispr-Cas9, que usa RNA associado à proteína Cas9 para cortar a dupla fita com precisão

2015 Junjiu Huang usa Crispr para editar células germinativas em experimento para criar embriões com alterações genéticas que poderiam ser hereditárias, violando princípios éticos

2015 Primeira Cúpula Internacional sobre Edição Genética Humana, nos EUA: cientistas recomendam o avanço das pesquisas, mas alertam sobre os riscos de imprecisões da técnica na edição de embriões

2018 Segunda cúpula, em Hong Kong: He Jiankui anuncia o nascimento de bebês editados geneticamente; um ano depois é condenado à prisão na China por violar princípios éticos

2019 OMS cria comitê consultivo para desenvolvimento de padrões globais de governança e supervisão de edição do genoma humano

2022 A terceira cúpula deve acontecer no Instituto Francis Crick, em Londres

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