Atletas veem concessão como ameaça a 'berço olímpico' do Ibirapuera

Secretário afirma que governo proverá condições de treino aos esportistas

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O Conjunto Desportivo Constâncio Vaz Guimarães, que deve ser concedido à iniciativa privada pelo governo de São Paulo

O Conjunto Desportivo Constâncio Vaz Guimarães, que deve ser concedido à iniciativa privada pelo governo de São Paulo Gabriel Cabral -22.out.2019/Folhapress

São Paulo

O processo de concessão do complexo do Ibirapuera virou tema de debates entre atletas e o governo do estado de São Paulo.

A iniciativa da gestão João Doria (PSDB) foi aprovada em junho na Alesp (Assembleia Legislativa de São Paulo) e prevê a instalação de uma nova arena multiuso para realização de eventos esportivos, culturais e religiosos. A previsão é que o edital de concorrência seja publicado até abril do ano que vem.

O complexo abriga atualmente o Centro de Excelência Esportiva do estado, antes chamado Projeto Futuro. Criado em 1984, dele surgiram medalhistas olímpicos como Maurren Maggi (ouro no salto em distância) e os judocas Tiago Camilo (prata e bronze), Felipe Kitadai (bronze), Rafael Silva (dois bronzes) e Henrique Guimarães (bronze).

Vista aérea do Complexo Desportivo Constâncio Vaz Guimarães, o Complexo do Ibirapuera, com a pista de atletismo, o campo de futebol, o Ginásio do Ibirapuera e as piscinas
Vista aérea do Complexo Desportivo Constâncio Vaz Guimarães, o Complexo do Ibirapuera, com a pista de atletismo, o campo de futebol, o Ginásio do Ibirapuera e as piscinas - Gabriel Cabral - 22.out.2019/Folhapress

Atletas que hoje vivem e treinam no Ibirapuera mostram apreensão com o futuro, já que a pista de atletismo e outras estruturas devem ser demolidas para dar lugar à nova arena.

“Essa preocupação não tem o menor sentido. O projeto vai continuar. A pista vai ser demolida? Provavelmente. Se for, vamos dar outra [para treinarem]”, afirma o secretário de esportes de São Paulo, Aildo Ferreira Rodrigues.

A lei que autoriza a concessão obriga o estado a prover condições de treino para os atletas. O governo estuda convênios com órgãos esportivos ou prefeituras para cumprir a demanda. “Os atletas precisam pensar um pouco em sair da comodidade”, diz Rodrigues.

No Ibirapuera, os esportistas têm à disposição refeitório, alojamento, salas de fisioterapia e assistência médica. Qualquer mudança, na visão deles, geraria problemas de logística pelo deslocamento na cidade e aumentaria o custo de vida.

Hoje, o projeto abriga cerca de cem atletas, entre eles Mateus Adão e Gabriele Sousa, que praticam salto triplo.

“Existem pessoas que chegaram [ao projeto] neste ano. Se isso aqui fechar, para onde elas vão?”, questiona Mateus Adão, 23, medalhista de prata no Mundial Universitário de Atletismo de 2019 e um dos cerca de cem atletas no projeto.

Gabriele Sousa, 24, ouro no Troféu Brasil deste ano, conta que, pouco antes de receber um convite para viver no local, quase desistiu da carreira. As marcas atingidas já nos primeiros meses de treinos no Ibirapuera a surpreenderam.

“Ver os resultados é fácil. Agora, ver tudo de que precisamos para ter aquele resultado é difícil”, diz.

A ascensão no cenário nacional rendeu à saltadora a segunda melhor marca do Brasil no ranking mundial de 2019, 14,03 metros, e o sonho de uma vaga nos Jogos de Tóquio —ela precisa de mais 29 cm para alcançar o índice olímpico.

O mesmo vale para Mateus, que é terceiro melhor do país (com um salto de 16,68 metros) na lista da federação internacional de atletismo e está a 46 cm do índice.

O Ibirapuera abriga atletas de atletismo, judô e vôlei. “São praticamente inexistentes [em São Paulo] espaços que contemplem tais instalações”, afirma o treinador de atletismo do Ibirapuera, Nélio Moura, técnico de Maurren Maggi no ouro olímpico de 2008.

Nélio defende que, caso seus atletas tivessem que usar outras pistas, ficariam à mercê da agenda de terceiros e não teriam estrutura semelhante à de hoje, o que prejudicaria o desempenho nas competições.

A nova arena multiúso deverá ter espaço para mais de 20 mil pessoas e expandir as possibilidades de exploração do espaço. Neste ano, o ginásio do Ibirapuera recebeu ou vai receber atrações como shows da dupla Henrique & Juliano e da banda Black Eyed Peas, apresentação do Cirque du Soleil e etapa do UFC.

Mesmo com agenda diversa, o complexo gerou prejuízo nos últimos dez anos, segundo a secretaria estadual. Em 2018, por exemplo, as receitas foram pouco superiores a R$ 2,7 milhões, enquanto as despesas superaram os R$ 13,5 milhões.

A demolição do ginásio, no entanto, é vista como cara pelos estudos preliminares feitos pela consultoria, contratada do governo, e a tendência é que o local passe a contar com duas arenas (a já existente e prevista na concessão). “Já vi projetos que remodelam o ginásio para shopping, outros que remodelam para eventos esportivos de menor porte”, declara o secretário.

A mobilização contra o projeto levou, em junho, dezenas de atletas à Alesp para uma audiência pública convocada pelo deputado Carlos Giannazi (PSOL). Eles planejam organizar uma "jornada esportiva" no local quando o edital de licitação for divulgado.

Ainda que entendam que as condições oferecidas pelo complexo são bem acima da média da realidade brasileira, os esportistas apontam sinais de sucateamento.

“A gente desvia de uma bolha, de um problema, de um bloco caído, e continua”, brinca Gabriele, sobre o estado de conservação da pista.

O governo concorda com a avaliação. “[O complexo] carece de grandes investimentos para que a gente possa ter equipamentos adequados”, afirma Rodrigues, que defende que a iniciativa privada seria mais competente na gestão.

Trecho da pista de atletismo do Conjunto Desportivo Constâncio Vaz Guimarães (onde fica o ginásio do Ibirapuera), que apresenta problemas como bolhas e buracos
Trecho da pista de atletismo do Conjunto Desportivo Constâncio Vaz Guimarães (onde fica o ginásio do Ibirapuera), que apresenta problemas como bolhas e buracos - Gabriel Cabral - 22.out.2019/Folhapress

“Hoje, funciona ali mais um alojamento”, afirma o secretário. Ele diz que está elaborando diretrizes mais rígidas para o programa de alto rendimento e que os atletas que não se enquadram nelas “têm que estar preocupados”.

Uma das atletas que podem ser afetadas pelas novas diretrizes é a fundista Ana Luiza dos Anjos, 56, conhecida como “Animal”. Ex-moradora de rua, ela foi convidada a morar no Ibirapuera há 21 anos e permanece no local até hoje.

“Pensar em sair daqui vai mexer com a minha cabeça. Como é que eu vou correr? E esses atletas do interior? Tem gente que chora, que está machucada”, diz Animal.

Da esquerda para a direita, Gabriele Sousa, Animal e Mateus Adão, atletas do Complexo do Ibirapuera
Da esquerda para a direita, Gabriele Sousa, Animal e Mateus Adão, atletas do Complexo do Ibirapuera - Acervo pessoal
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