Ao não se posicionar de forma explícita contra discursos punitivistas e autoritários que alimentam os ciclos de violência no Brasil, a mídia tradicional os beneficiou. A opinião é de Oscar Vilhena Vieira, diretor da Escola de Direito da FGV-SP e colunista da Folha.
“Como o volume de violência no Brasil é muito grande e como a luta contra a violência é contraintuitiva —você falar que é mais seguro não andar armado do que andar armado, que é mais seguro a polícia não matar as pessoas do que matar—, a mídia clássica foi se retraindo, não disputou a racionalidade desse negócio”, afirmou Vilhena.
“Assim tornou-se senso comum que direitos humanos é direito de bandido, que bandido bom é bandido morto, com consequências brutais para a população pobre, jovem e negra, que habita as periferias."
Vilhena participou de um debate sobre jornalismo e democracia no dia 15 de fevereiro, organizado como parte dos projetos especiais em comemoração aos 100 anos da Folha.
Ele havia sido questionado pela mediadora do debate, a ombudsman do jornal, Flavia Lima, se via erros da imprensa na sua relação com outras instituições.
Para ele, outro exemplo dessa retração seria o uso da expressão “agenda de costumes” na cobertura de pautas do governo atual, como a facilitação da posse de armas, o excludente de ilicitude ou a mudança do Código Civil para impedir a união de pessoas do mesmo sexo.
“Não tem a ver com a altura da saia ou a cor do cabelo, mas com a morte e a vida das pessoas. Existe uma agenda para destruir a civilização no Brasil e precisamos deixar muito claro que ela é inaceitável", disse.
Para Ilona Szabó, presidente do Instituto Igarapé e também colunista da Folha, a taxa de homicídios no Brasil, uma das maiores do mundo, demonstra a precariedade da cultura democrática no país.
Tornou-se senso comum que direitos humanos é direito de bandido, que bandido bom é bandido morto, com consequências brutais para a população pobre, jovem e negra que habita as periferias
“Fomos criando um modelo [de segurança], com a opção pela segurança privada, a opção pela legítima defesa pessoal, a ideia de que as milícias são um mal menor”, disse. “Deu no que deu. A gente é um país com vários rincões onde não tem aplicação da lei. Tem populações subjugadas por grupos violentos, e forças que estão no poder que colaboraram para isso.”
Na opinião de Szabó, o papel da mídia em responsabilizar os agentes dessa violência “às vezes foi falho, mas é fundamental”. Segundo ela, “estamos num momento que não é só isso, a gente precisa pensar em como fazer as instituições se moverem. Elas não estão respondendo à altura.”
Também comentando a relação da imprensa com discursos violentos, Larry Rohter, colunista da revista Época e ex-correspondente do New York Times no Brasil, lembrou o caso do senador republicano Tom Cotton. Em junho, Cotton publicou um artigo no jornal americano pedindo a intervenção das Forças Armadas para conter os protestos contra a violência policial e o racismo motivados pelo assassinato de George Floyd.
A gente precisa pensar em como fazer as instituições se moverem. Elas não estão respondendo à altura
“Os jornais, revistas, emissoras de rádio e televisão têm que dizer que não está correto. É uma luta incansável, mas aqui [nos EUA] fez uma diferença importante”, afirmou Rohter.
Ele citou como exemplo o jornal The Washington Post, que contabilizou mais de 30 mil mentiras ditas por Donald Trump durante os quatro anos de seu mandato.
Na visão de Rohter, as redes sociais têm feito esforços semelhantes —o Twitter e o Facebook, por exemplo, baniram o ex-presidente americano depois que, sob incentivo dele, os apoiadores de Trump invadiram o Capitólio, em 6 de janeiro. Mas os parâmetros não são tão claros.
“É uma medida merecida, mas a pergunta que surge é: e Bolsonaro? E Orbán? E Erdogan? E Modi?”, indagou, referindo-se, respectivamente, ao presidente brasileiro, o primeiro-ministro da Hungria, o presidente da Turquia e o primeiro-ministro indiano.
Os jornais, revistas, emissoras de rádio e televisão têm que dizer que não está correto. É uma luta incansável, mas aqui [nos EUA] fez uma diferença importante
“Nos Estados Unidos, a maioria apoia a tentativa de silenciar Trump. Mas em outros países, os interesses comerciais destas empresas ainda usam dois pesos e duas medidas —um padrão nos Estados Unidos e outro no exterior.”
A filósofa e colunista da Folha Djamila Ribeiro reforçou a importância de responsabilizar essas empresas. “Um jornal, se escreve alguma coisa errada, vai ser responsabilizado. Nas redes sociais, não”, disse.
“Não há uma preocupação em melhorar as políticas dessas redes. As pessoas não entendem que há uma exploração econômica do ódio, como as redes sociais são empresas bilionárias que lucram com isso tudo.”
Djamila lembrou que, no Brasil, qualquer discussão sobre imprensa e democracia deve levar em conta a concentração dos veículos em monopólios midiáticos e o fato de que a maioria da população não tem acesso a uma educação crítica de qualidade.
Um jornal, se escreve alguma coisa errada, vai ser responsabilizado. Nas redes sociais, não. Não há uma preocupação em melhorar as políticas dessas redes
Vilhena trouxe à tona outro problema marcante da realidade brasileira: o uso do Poder Judiciário como instrumento de censura a jornalistas.
Citou processos movidos pela família Sarney e pelo ex-governador do Rio de Janeiro Anthony Garotinho (Pros), que suspenderam a publicação de reportagens críticas a esses políticos. Também mencionou a estratégia de mover centenas de processos ao mesmo tempo, em vários estados do país, contra uma só pessoa, usada pela Igreja Universal. Foi o que aconteceu com Elvira Lobato, então repórter da Folha, em 2007, e é o que ocorre agora com o escritor João Paulo Cuenca.
“O Judiciário parece nunca ter compreendido o sistema de proteção à liberdade de expressão e o direito à informação. Ele tende a colocar a honra e a privacidade de pessoas públicas acima da liberdade expressão, como se ela fosse algo do interesse do jornalista, o que não é”, afirmou.
Para Vilhena, decisões recentes do Supremo Tribunal Federal —como a que barrou o direito ao esquecimento, a que proibiu a censura de biografias não autorizadas e a que pôs fim à Lei de Imprensa— revelam um conflito entre o alto e o baixo clero. “O STF está se movendo de maneira correta, mas precisa ser mais contundente para que os jornalistas não sejam objeto desse tipo de ataque”, disse.
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