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Josué Guimarães chefiou sucursal em Porto Alegre e criticou ditadura em artigos na Folha

Escritor gaúcho, que também faria 100 anos em 2021, escreveu opinião, reportagens e ficção entre os anos 1970 e 1980

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Porto Alegre

Depois de ler uma crônica que criticava a ditadura militar, nas páginas da Folha, em uma tarde de 1980, Sergius Gonzaga perguntou ao autor, Josué Guimarães, se ele não tinha medo. “Tenho”, respondeu o jornalista e escritor. “Mas, na hora da escrita, penso no que está ocorrendo no país e venço os meus temores.”

Gonzaga, professor do departamento de Letras da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), diz que olhou para Josué, com porte majestático, a barba dando-lhe aspecto de profeta bíblico que o seu nome anunciava, e sentiu orgulho de ser seu amigo.

"Era um causeur magnífico, capaz de levar os ouvintes ao paroxismo do riso ou à emoção mais candente, pois a exemplo da maioria dos grandes ficcionistas do mundo parecia ter vivido todas as possibilidades do humano, das experiências mais ínfimas às mais avassaladoras", lembra.

Josué Guimarães, escritor, jornalista, colunista e diretor da sucursal da Folha de S.Paulo em Porto Alegre - Folhapress

Josué, que havia dirigido a Agência Nacional no governo João Goulart (1961-1964), foi correspondente da revista O Cruzeiro na região Sul, passou pelos Diários Associados de Assis Chateaubriand e foi um dos primeiros jornalistas a entrar na então URSS e na China continental, escrevendo para a Última Hora, de Samuel Wainer, voltou de uma temporada em Portugal, e implantou a sucursal da Folha na capital gaúcha, que dirigiu por um tempo, e de onde escreveu colunas, ensaios, ficção e reportagens, até sua morte em 1986 — noticiada na capa.

Antes daquela tarde de 1980, em julho de 1977, a coluna “Jornal dos Jornais”, assinada por Alberto Dines, registrava a demissão de Josué da produção de um programa na televisão gaúcha, um fato noticiado por veículos nacionais como Folha, Jornal do Brasil e O Globo, mas que passou batido na imprensa local.

“Razões superiores, foi-lhe dito. O afastamento coincide com as queixas que setores oficiais ultimamente faziam às bravas posições de Josué nos seus artigos da Página Dois desta 'Folha'. Como estas pressões não conseguiram atingir Josué no jornal onde escreve sobre política e assuntos nacionais, foram buscar setores mais vulneráveis: a televisão — gerenciada pela iniciativa privada, mas, na realidade, estatal”, escreveu então Dines.

“Ele escrevia o que tinha que escrever, independentemente de crítica. Sempre foi um cara muito reto, muito centrado nas coisas dele, sempre escrevia o que achava, pela ideologia dele”, afirma um dos filhos, Jaime Guimarães.

Nos textos em que publicou no jornal, durante quase dez anos, o jornalista, que viveu sempre próximo à política — foi vereador pelo PTB em Porto Alegre, ocupou cargo na Secretaria do Interior e Justiça no Rio Grande do Sul ocupada por João Goulart — e escreveu sobre ela usando pseudônimos e seu nome real, fez críticas ao regime que, dizia, empobreceu o país civicamente.

Uma das primeiras matérias que assinou na Folha, publicada no último dia de 1976, abria a narração de uma discussão no Legislativo gaúcho, dizendo: “Deputados gaúchos reservaram ontem grande parte do expediente da Assembleia Legislativa para debater um assunto que atinge de perto a maior parte do povo brasileiro: a censura”.

Nas colunas, que por um tempo foram assinadas com as iniciais J.G., era ainda mais incisivo. Em uma delas, no fim de 1977, sobre a reabertura política, escreveu: “Todos, mas todos mesmo, querem o retorno do país ao Estado de Direito, sem entrelinhas, sem alterações do nome do AI-5, com eleições diretas, livres, secretas e universais, querem o 'habeas corpus', a representatividade real do povo, enfim querem um país que retorne a viver dentro de uma Constituição que mereça este nome”.

Em novembro de 1978, escreveu a reportagem que contava a situação da brasileira Flávia Schilling, presa política no Uruguai, relatando as violações da ditadura no país vizinho. Filha de Paulo Schilling, assessor especial de Leonel Brizola que foi para o Uruguai com a família depois do golpe, Flávia integrou o Movimento Libertação Nacional – Tupamaros, e estava presa desde 1972. Ela só foi libertada em abril de 1980.

Próximo a Jango, ao invés do exílio, Josué viveu clandestino no Brasil depois de 1964, ficou anos sem ver os quatro filhos do primeiro casamento, se afastou do jornalismo, chegou a trabalhar com uma livraria em Santos, usando o nome de Samuel Ortiz, e respondeu a cinco inquéritos em liberdade -- um deles, por ter recebido o líder comunista Luís Carlos Prestes na Agência Nacional, outro pela participação no movimento da Legalidade, que garantiu a posse de João Goulart em 1961.

Em uma carta, ele conta que se apresentou às autoridades, no Rio de Janeiro, depois de ser procurado pela Polícia Federal na casa de um amigo, em meados de 1969, na capital gaúcha, e que não retornou ao Tribunal de Contas do Rio Grande do Sul, onde tinha um cargo, porque temia ser preso. “Fiquei cinco dias depondo e então fui liberado, com ordem de viajar para Porto Alegre”, relatou.

“Quando se estabelece um regime de exceção, a vida está correndo. Então, tem muita gente que está levando a vida, tem muita gente que é contra e tem muita gente que é contra e não faz nada porque está levando a vida. O Josué e o meu pai foram caras que se insurgiam contra”, diz Ivan Pinheiro Machado, que editor do escritor na L&PM e seu amigo.

Os dois se conheceram porque o pai de Ivan, Antônio Ribas Pinheiro Machado Netto, deputado estadual pelo PCB, cassado em 1948, foi advogado do jornalista.

Mesmo com o fim da ditadura e José Sarney na presidência, Josué seguiu crítico ao governo, falando sobre o então presidente ter chegado ao cargo sem votos, aos problemas enfrentados por ele, como a inflação e ao ver o MDB, que durante anos fora o único partido de oposição permitido, aceitar imposições sobre a questão da anistia.

Josué também escreveu sobre racismo, como na coluna sobre o episódio em que a jornalista Glória Maria foi barrada no Rio Othon Palace. “Há no Brasil um racismo descarado, aberto, indiferente às leis e às autoridades”, dizia então. E sobre o regionalismo, em ensaios em que abordava questões do Rio Grande do Sul, com humor, como a mudança da paisagem com o avanço das lavouras de soja e trigo.

Na época em que Josué chegou à Folha, o jornal buscava ampliar vozes nacionais e profissionalizar ainda mais o jornalismo, lembra Antenor Braido, que trabalhou por cerca de 20 anos em jornais do Grupo Folha, ocupando cargos de chefia, inclusive na Agência, à quem as sucursais reportavam. A página 2 tinha rotação de colunistas de várias capitais.

“Elas eram comentadas, porque, muitas vezes, numa coluna dessas, surgiam informações que a gente não pegava no noticiário normal, nem da Folha, nem dos outros jornais”, diz Braido.

Na sucursal na rua Jerônimo Coelho, no centro de Porto Alegre, próxima à praça da Matriz, com a Catedral e os Três Poderes, Josué mantinha o gravador em cima da mesa e um mapa mundi na parede, onde volta e meia apontava para os locais em que passou em suas viagens, segundo lembranças da filha Adriana Guimarães e de Nelson Adams, repórter do jornal na época.

Artigos de Josué Guimarães no acervo do escritor na UPF
Josué usou laudas da Folha, que tinha disponíveis na sucursal, para escrever romances como "Camilo Mortágua" (1980) - Natália Fávero/Divulgação UPF

Adriana cresceu vendo o pai aliar os escritos jornalísticos à literatura, nas páginas com a logo da Folha, em vermelho. “Tenho bilhetes, cartas do Josué escritos nas laudas da Folha”, lembra Deonísio da Silva, escritor e amigo, a quem Josué concedeu uma de suas últimas entrevistas.

O Acervo Literário Josué Guimarães, na UPF (Universidade de Passo Fundo), conserva páginas de “Camilo Mortágua” (1980), uma de suas principais obras, escritas nestas folhas do jornal, assim como o rascunho da capa de outra obra, “Um Corpo Estranho Entre Nós Dois” (1983).

Josué ingressou na literatura aos 49 anos, mas logo se tornou um nome reconhecido, com obras como "Tambores Silenciosos" (1977), os dois volumes do que deveria ser a trilogia "A Ferro e Fogo", alguns títulos de literatura infantil e infanto-juvenil.

“O elemento comum entre ambos [jornalismo e literatura] é a urgência, a necessidade de expressão e enfrentamento de um determinado problema e junto com isso denúncia. A função dele era o uso da palavra para a denúncia e para, de alguma maneira, desvelar a ordem injusta em que a gente se encontra”, diz Miguel Rettemaier, coordenador do acervo e professor na UPF.

Em 1978, Josué, identificado como sucessor de Érico Veríssimo, de quem era próximo, inverteu as posições e foi entrevistado no jornal, sobre o lançamento de seu novo livro, que anos mais tarde seria adaptado para a televisão, “Dona Anja”.

“Escrevo para os brasileiros que em geral não leem muito. Mas é pensando neles que escrevo e, na verdade, o que me leva a escrever são justamente os problemas políticos e sociais da nossa gente, numa hora tão difícil para todos nós”, afirmou.

JOSUÉ GUIMARÃES (1921-1986)

O escritor e jornalista gaúcho faria 100 anos no mesmo ano do centenário da Folha. Nascido em São Jerônimo (RS), em 1921, região de minas de carvão, Josué partiu para o Rio de Janeiro no fim da década de 1930, onde começou a trabalhar na imprensa nacional. Depois de passar por veículos como a revista O Cruzeiro, viver clandestino, ser correspondente da empresa jornalística Caldas Júnior em Portugal, em 1976, ele implanta a sucursal da Folha em Porto Alegre e passa a colaborar com artigos, reportagens e ficção. Josué morreu na capital gaúcha em 1986.

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