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Isolados pela seca, produtores de guaraná passam fome na Amazônia

Ribeirinhos criam frangos para driblar falta de peixe prolongada por estiagem extrema

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Os ribeirinhos Alcimar Monteiro e Adrinaldo Caldas pescam em uma lagoa quase seca próxima à comunidade São Sebastião, em Maués Lalo de Almeida/Folhapress

Maués (AM)

Não há mercados no Alto Urupadi, região de comunidades ribeirinhas no município amazonense de Maués. Para comer, as centenas de famílias que ali vivem recorrem a quatro fontes: o rio, que lhes fornece o peixe; a floresta, onde caçam e colhem frutos; a roça, onde plantam mandioca e outros tubérculos; e os comércios do centro da cidade, localizados a horas de distância de barco.

Todas essas alternativas foram prejudicadas pela estiagem histórica que atingiu o Amazonas neste ano de 2023, tão severa que matou botos, secou rios, tingiu o céu de fumaça e deixou as 62 cidades do estado em situação de emergência.

O clima extremo levou insegurança alimentar a populações tradicionais como as do Alto Urupadi, que lidam com a escassez de água e comida mesmo vivendo na região com maior biodiversidade do planeta.

"Este rio era muito farto", diz o líder comunitário José Cristo de Oliveira, 48, citando uma infinidade de peixes que costumavam pescar por ali: jaraqui, bodó, pirarucu, curimbatá, tucunaré, acará, tambaqui, caratinga, pacu.

Agora, o rio raso e excessivamente quente espantou muitas espécies de perto da margem, e os pescadores precisam ir longe em busca da refeição de suas famílias.

A falta de profundidade da água também atrapalha a locomoção até a cidade. Só embarcações pequenas navegam, e mesmo assim por rotas alternativas, o que multiplica o tempo de viagem, o gasto com combustível e o preço dos poucos produtos à venda em locais próximos. Um frango chega a custar R$70 e uma lata de sardinha, R$12.

Para piorar, o sol intenso secou as plantações e, como os frutos só nascem na época de chuvas, os animais que poderiam ser caçados ainda não deram as caras por ali.

"Muita coisa que nós plantamos nós não colhemos por causa do verão forte. Fizemos outro roçado, mas morreu a metade. Agora estamos replantando de novo", conta Aleandra Sá Pimentel, 34, moradora da comunidade de São Sebastião.

Os homens do povoado saem para pescar antes do nascer do sol. Eles jogam a rede, cutucam a lama do fundo do rio com o remo buscando algum tucunaré ou acará que possa ter se escondido, mudam de lugar para ver se têm mais sorte. Dependendo da quantidade que conseguem, terão almoço e janta ou só uma das duas refeições.

Mãe de sete filhos, Aleandra prioriza o prato das crianças. "Antes de dormir, tento fazer um mingau ou uma sopinha. Se não comerem nada, eles ficam se queixando, dói o estômago."

Quem tira sua sobrevivência da floresta e dos rios já está acostumado com a alternância dos períodos de seca (de maio a outubro) e cheia (de janeiro a abril). O calendário alimentar dos ribeirinhos segue esse ritmo, com maior abundância de peixes na estiagem e de frutos e caça na época de chuvas.

O período de conexão entre essas estações é o mais crítico, já que a pesca fica mais difícil e os frutos ainda não vingaram nem atraíram animais. Geralmente isso dura um mês, mas essa transição vem se prolongando.

"No ano passado foram 60 dias. Neste ano eles deixaram de pescar dois meses atrás e a seca continua. Isso cria uma lacuna na principal proteína da dieta, que é o pescado", explica Cloves Pereira, professor da Faculdade de Ciências Agrárias da UFAM (Universidade Federal do Amazonas).

Devido à confluência de fenômenos como o El Niño, as altas temperaturas do Atlântico Norte e o aquecimento global, os rios continuaram a secar quando já deveriam estar enchendo.

"Nesse calendário ecológico, onde vão se sucedendo as atividades produtivas, a água é uma referência. E quando isso é modificado, os povos tradicionais são os primeiros a sentir o impacto", afirma Pereira.

Para Pereira, se essas populações não criarem estratégias de adaptação para extremos climáticos, podem até ser obrigadas a migrar, deixando o território onde vivem há gerações e que ajudam a preservar.

Terra do guaraná

Com 61 mil habitantes espalhados por uma área 25 vezes maior do que a cidade de São Paulo, Maués é tido como o berço do guaraná. A frutinha, famosa por parecer um olho, foi domesticada há séculos pelos indígenas Sateré Mawés, com métodos de cultivo e conservação usados até hoje.

Apesar de ter sido superado pela Bahia na quantidade produzida, Maués se orgulha de ter um guaraná de qualidade, beneficiado artesanalmente. Fotos, desenhos e esculturas da fruta são onipresentes por ali.

O símbolo da cidade, porém, não passou incólume pela seca. Além de terem perdido uma parte da safra devido ao calor, muitos agricultores não conseguiram transportar seu produto até o centro, o que prejudicou sua principal fonte de renda no ano.

"O guaraná precisa de sol para produzir flor e fruto. Mas na floresta ele fica mais protegido e o solo segura a umidade. Fora da floresta, com o sol tão forte, a planta morre", explica o engenheiro florestal Eric Brosler, que cultiva guaraná em Maués.

"Toda nossa produção está no galpão, e aí o dinheiro não entra", diz José Cristo, que é presidente da Associação dos Agricultores Familiares do Alto Urupadi (AAFAU). Ele calcula que os 60 produtores do grupo devem colher a metade das 30 toneladas do grão de guaraná que vendem "em um ano bom".

Na busca de segurança para sobreviver às intempéries, eles se esforçam para agregar valor ao produto local. A eliminação de atravessadores, a exportação e a certificação orgânica são algumas estratégias. "Nosso guaraná é de qualidade. Ele demora mais a produzir, mas tem sustentabilidade por anos", diz Cristo. "O processo é todo artesanal. É a nossa cultura e a gente não quer perder."

Frangos na floresta

Outra forma de adaptação ao clima extremo é a busca de autossuficiência na produção de alimentos. Eles implementaram um viveiro de mudas e até uma criação de frangos, que se tornam uma opção ao peixe em tempos difíceis.

Construído em 2022, o aviário-escola tem 170 animais e é mantido por um grupo de mulheres, que foram treinadas em técnicas de criação e abate por especialistas da UFAM. O projeto surgiu após uma visita do chef David Hertz, fundador da ONG Gastromotiva, a Maués.

"Cheguei lá no dia 25 de dezembro de 2021 e a primeira pergunta que eu fiz foi como tinha sido o Natal. Eles falaram: ‘Não teve Natal, não tem comida’. Nosso jantar foi dois ovos cozidos com bolacha salgada, arroz e duas latas de sardinha que levamos. Mesmo assim foi uma cena muito festiva, que me marcou", conta.

Hertz, que atua no combate à fome há anos, não imaginava encontrar tamanha escassez na Amazônia. Ele se uniu ao Instituto Acariquara, que já era seu parceiro local em um projeto de cozinhas solidárias. A ONG atua no Alto Urupadi desde 2016, com apoio ao associativismo e ao desenvolvimento agrícola.

O aviário foi uma escolha dos próprios ribeirinhos. A ideia é que ele se torne autossustentável, com a produção local de ração e a venda de uma parte dos frangos para o PNAE (Programa Nacional de Alimentação Escolar). Também está nos planos a criação de uma granja de galinhas poedeiras.

"Começamos com o frango de abate para suprir a emergência imediata, que é a fome. Depois eles podem montar a granja, a chocadeira. O objetivo é fazer o ciclo completo lá", afirma Ademar Vasconcelos, diretor executivo do Acariquara.

"As soluções para a Amazônia as próprias comunidades já têm. A universidade entra com a assistência técnica", completa.

O Natal de 2022 foi mais farto em São Sebastião. Os frangos foram repartidos para as famílias e uma parte foi usada em um sopão comunitário.

Para Hertz, é o mínimo que os moradores do Alto Urupadi merecem. "Quando bem alimentados e com autonomia financeira, eles podem fazer todas as escolhas e continuar cuidando da floresta", afirma. "A ação contra a mudança climática tem que começar com o cuidado com as pessoas. São eles os defensores daquela terra."

A causa 'Fome de quê? Soluções que inspiram' conta com o apoio da VR e da Rede Folha de Empreendedores Socioambientais.

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